cage: chance: change

*links em construção


prefacio preparado
por
augusto de campos [ para o livro de segunda a um ano ]


depois que pound morreu
o maior poeta vivo americano
talvez o maior poeta vivo
é um músico
JOHN CAGE
talvez porque não pretenda ser poeta
“eu estou aqui
e não tenho nada a dizer
e o estou dizendo
e isto é poesia”
diz cage
em sua conferência sobre o nada (1949)
enquanto os poetas que pretendem dizer tudo
já não nos dizem nada


o seu diário: como melhorar o mundo
(você só tornará as coisas piores)
1965-1972
cujas primeiras séries fragmentárias
são coligidas neste livro
é o único poema longo consistente
escrito depois dos cantos de ezra pound
que consegui ler e amar
(absorveu ep sem imitá-lo
o que me parecia impossível)
poema?
talvez ele pretenda – como eu –
que isto seja prosa
se o for
é um dos poucos exemplos de prosa crítica
original quanto à própria linguagem


prosa ou poesia
reconcilia pound e gertrude stein
(outro impossível)
definição precisa e nonsense.


john cage
“a figura mais paradoxal de toda a música contemporânea
o músico
com o qual muitos compositores pós-webernianos e eletrônicos
estão freqüentemente em polêmica
sem poder subtrair-se à sua fascinação” (umberto eco)


nascido em los angeles em 1912
atravessou os seus 70 anos
continuando jovem
o que é quase incompreensível entre nós
onde a regra (ou a maldição)
é o envelhecimento-precoce intelectual
como disse pignatari observando que volpi
é um dos raros artistas brasileiro que não decaíram depois dos 40


aluno de henry cowell e de schoenberg
interessou-se desde cedo pelos instrumentos
de sons indeterminados
e pela música e filosofia orientais
mas também por artes gráficas e pintura
(ensinou na escola de design de chicago)
o que explica a invenção visual
de seus textos
e partituras


arnold schoenberg
(que lhe dava aulas de graça
sob uma única condição: devotar a vida
à música)
recriminou um dia o seu descaso pela harmonia
dizendo-lhe que para um músico
isso era o mesmo que defrontar-se com um
muro
o jovem cage lhe respondeu:
“nesse caso eu devotarei
a minha vida
a bater a cabeça nesse muro”


e foi o que ele fez
literalmente
passando a compor
música para percussão
sob a inspiração de ionisation
de edgard varèse
donde
first construction in metal (1937)
escrita só para percussão metálica
(gamelão, sinos, gongos, folhas de aço,
cilindros de freio de automóvel, bigornas, etc)
onde aplica o princípio da tala hindu
música medida:
uma estrutura rítmica
baseada na duração
não das notas
mas dos espaços de tempo


1937 já dizia:
“enquanto no passado o ponto de discórdia
estava entre a dissonância e a consonância
no futuro próximo ele estará
entre o ruído
e os assim chamados sons musicais.”


daí, para a invenção do
piano preparado
(um piano acondicionado com pedaços de metal
borracha e outros materiais entre as cordas
para alterer-lhe a sonoridade):
“uma orquestra de percussão para um único instrumento
e um único executante”
ou uma livre
klangfarbenmelodie” (melodia de timbres)
que associa webern ao gamaleão indonésio


de certa forma
cage
antecipou-se facticamente aos europeus
na compreensão do fenômeno webern:
no choque de silêncios
entre WEBERN e CAGE
– o europeu e o americano –
está capsulado
todo o futuro dilema da música
entre ordem e caos
(ver o meu profilograma n.º 2
HOM’CAGE TO WEBERN
– o n.º1 fundia os perfis
de pound e maiakóvski)


bacanal (1938) foi a primeira peça para piano preparado
seguiram-se amores para p/p e percussão (1943)
sonatas e interlúdios para piano preparado (1946-48)
e concerto para piano preparado (1951)
entre outras


em 1939 compõe paisagem imaginária n.º1
proto-musique concrète
combinando gravações e frequências
pratos e cordas (de piano)


a atuação de cage nos anos 50 no auge da revolução concreto-eletrônica
foi fulminante
valorizado por boulez e schaeffer por suas pesquisas no domínio da acústica
não se contentou em historicizar-se como profeta
preferiu intervir criativamente
mais novo que os novos


a crítica crucial de cage
aos melhores músicos da geração
batizada de “pós-weberiana”:
não faziam música por causa da música de webern
mas apenas música depois da música de webern
não havia nela nenhum traço de klangfarbenmelodie
nenhuma preocupação com descontinuidade
– antes uma surpreendente aceitação
dos mais banais artifícios da continuidade


alguns remédios:
acaso e silêncio
“a música européua poderia ser melhorada
com um pouco de silêncio”


reagindo contra o conceito de música
totalmente prederminada,
levado às últimas consequências pelos jovens serialistas
pós-weberianos (boulez, stockhausen)
cage cria a “música indeterminada”.
desde 1950 começara a desenvolver
a sua teoria da indeterminação em música
derivou-a do i ching
o clássico livro-de-oráculos chinês


mediante operações do acaso
a partir do i ching (livro das mutações)
compôs, em 1952, music of changes (música das mutações)
com sons e silêncios distribuidos casualmente
lançamento de dados ou moedas
imperfeições do papel manuscrito
passaram a ser usados em suas composições
que vão da indeterminação
à música totalmente ocasional. música?


em 1951
cage apresenta o primeiro “happening”
no black mountain college, em north carolina.
paisagem imaginária n. 4 (do mesmo ano)
cmpôe-se de 12 aparelhos de rádio ligados ao acaso e simultaneamente
(a dinâmica, rigorosamente controlada)


em 4’33’’ (1952)
um pianista entra no palco
toma a postura de quem vai tocar
e não toca nada
a música é feita pela tosse
o riso e os protestos do público
incapaz de curtir quatro minutos e alguns segundos de
silêncio


o silêncio sempre interessou
(de fato, seu primeiro livro se chama
silence)
e nesse sentido ninguém entendeu melhr webern do que ele
por mais que os dois pareçam distantes
e embora para ele sob outro ângulo
o silêncio não existia:
“there is no such thing as silence”
“nenhum som teme o silêncio que o ex-tingue
e não há silêncio que não seja grávido de som”.


dentro da câmara anecóica (à prova de som)
ele ouviu dois sons
um agudo
outro grave
o agudo era o seu sistema nervoso
o grave o seu sangue em circulação
o silêncio
ou “o 13.º som”


ainda em 1952
outra inovação:
paisagem imaginária n.º5
a primeira composição de “tape music”
feita nos e.u.a.


em 1954 (em donaueschingen – reduto
dos serialistas europeus)
cage apresentou as composições
12’55.5078 para dois pianos
e willian mix para 8 magnetofones ligados a alto-falantes
(as obras incluíam ruídos, gravações em fitas magnéticas
e inesperadas intervenções dos executantes)
stockhausen e boulez
passaram a incluir o acaso mais ou menos controlado
em suas composições
e foi aquele desbunde geral da música “aleatória”


cage continuou fazendo das suas:
a ária (1958) para soprano
tem uma curiosíssima notação
em curvas coloridas e interrompidas
que deixam livre à interprete
a escolha de qualquer estilos
(lírico, folclórico, jazz, canção napolitana, ópera, etc)
além de toda a sorte de ruídos
(choro de bebê, ganido, gemido voluptuoso, etc)
a ária pode ser tocada junto com fontana mix
mistura de vários teipes
atlas eclipticalis (1961-62) para 1 a 98 instrumentos
é uma transcrição das constelações do firmamento
tornadas legíveis sob a forma de notas


em HPSCHD (harpsichord)
para cravos e computadores
composta em 1967-69 em colaboração com lejaren hiller
teipes de sons eletrônicos microtonais produzidos em computador
são combinados a citações de vários compositores
e às valsas para cravo compostas ao lance de dados
atribuídas a mozart
tudo articulado por uma programação de computadores
com sistema numérico derivado do modelo digital do i-ching
certos trechos de composição
foram gravados no canal da direita
outros no canal da esquerda
outros em ambos
de modo que o ouvinte pode alterar a composição
(aumentando, diminuindo eo eliminando algumas partes)
se acionar os botões do seu amplificador


para cage a música não é só técnica
de compor sons (e silêncios)
mas um meio de refletir
e de abrir a cabeça do ouvinte
para o mundo (até para tentar melhorá-lo
correndo o risco de tornar as coisas piores)


com sua recusa a qualquer predeterminação
em música
propõe o imprevisível como lema
um exercício de liberdade
que ele gostaria de ver estendido à própria vida
pois “ tudo o que fazemos”
todos os sons, ruídos e não-sons incluídos)
“é música”


por exemplo cogumelos
música e cogumelos
music and mushrooms
duas palavras casualmente próximas no dicionário (inglês)
cage ganhou um concurso tipo céu-é-o-limite
na tv italiana
respondendo sobre cogumelos
(e improvisando concertos com panela de pressão)


bem entendido ele não tem nada a ver com drogas
interessam-lhe os cogumelos comestíveis
“marcel duchamp aprendeu
e eu também
através da filosofia indiana
que algumas vezes você usa o acaso
e outras, não.
os cogumelos são uma dessas ocasiões
em que você não pode usar o acaso
porque você corre o risco de se matar”.


o acaso e mudança
por acaso
a palavra CAGE
está contida na palavra CHANGE
que pode ser vista
como uma casual mudança da palavra CHANCE


depois de ter levado a música
ao limite da entropia
e ao silêncio
cage parecia ter perdido o interesse em compor


em 1961 apareceu
SILENCE
o primeiro de uma série
inclassificável
de livros-mosaico
com artigos manifestos conferências
pensamentos aforismos
anedotas exemplares (koans)


depois dele foi a vez de
A YEAR FROM MONDAY
(de segunda a um ano)
1967
o segundo compêndio da visão
anarcosmusical
de cage


segue-se
M (1973)
reunindo escritos de 1967-72
e incluindo mais uma série do diário:
como melhorar o mundo, etc
(o título M foi escolhido
sujeitando as 26 letras do alfabeto
a operações de acaso baseadas no i ching
segundo cage
qualquer outra letra serviria
empora M seja a 1.ª letra
de muitas palavras e nomes de seu interesse:
de “mushrooms” a “music”
de marcel duchamp e merce cunningham
a marshall mcluhan e mao tsé tung)


o último livro dessa linhagem
é EMPTY WORDS (palavras vazias)
1979
nele aparecem mais fragmentos do diário
no prefácio cage afirma que
em 1973
recomeçou o diário
mas não conseguiu concluí-lo:
“sou um otimista
essa é a minha ‘raison d’être’
mas as notícias diárias
de certo modo
me deixaram mudo.”


os livros de cage
são
inovadores e imprevisíveis
como a sua música
em todos eles
há uma mistura
aparentemente disparatada de eventos
cage não fala de música
mas de ecologia política zen-budismo
cogumelos economia e acontecimentos triviais
extraindo poesia de tudo e de nada
um mosaico de idéias citações e estórias
os textos de apresentam
em disposições gráficas personalíssimas
indo desde o uso de uma IBM com grande
variedade de tipos
até combinação de numerosas
famílias de letraset
dos signos desenhados para indicar
pausas e ruídos
como a respiração e a tosse
até as tonalidades reticulares das letras


a mesma criatividade visual
que ele aplica às suas partituras e obras plásticas
como a série de objetos-poemas
– “plexigramas” –
que (de parceria com calvin sumsion)
realizou em 1969
sob o título
not wanting to say anything about marcel duchamp
(não querendo dizer nada sobre marcel duchamp)


cage se diz interessado na “linguagem sem sintaxe”
(o que o aproxima da poesia concreta)
citando o. brown
“a sintaxe é a estrutura do exército”
e thoreau
“quando ouço uma sentença
ouço pés marchando”
afirma que se tornou
um devoto da linguagem “desmilitarizada”
não-sintática
e compõe poemas nonsense-visuais
super-e-ou-justapondo
palavras/sílabas/letras
escoljidas ao acaso
entre dezenas de alfabetos de letraset:
os “mesósticos”


mas seria ingênuo tabelá-lo
com os rótulos de “antiarte” ou “antimúsica”
ele diz não acreditar que a arte deva se abandonada
e que a ausência de um objetivo material para a arte
a utilidade do inútil
é uma boa notícia para os artistas:
“a árvore que dava a melhor sombra de todas
era muito velha e nunca fora cortada
porque a sua madeira era considerada imprestável”
(chuang-tsé)


um fanático discípulo de cage
o compositor e videoartista nam june paik
cujas obras conversas apresentações atos cotidianos
divertem deliciam chocam e as vezes aterrorizam
ao próprio cage
disse-lhe um dia:
“por que não destruir todas as partituras e fitas
antes de morrer e deixar para história da música
apenas uma linha:
‘aqui viveu um homem chamado john cage’?”
resposta de cage:
“muito dramático”


felizmente para nós
ele não cessou de compor
nem de escrever


depois de HPSCHD
(iniciada no mesmo ano em que saiu este livro)
criou muitas outras obras


em 1969 começou a compor
cheap imitation
(imitação barata)
leitura para piano (com operações de acaso)
de “socrate” de satie
depois vieram
musicircus (1970) obra multimídia
bird cage – gaiola de pássaros e de cage (1972)
renga with apartment house 1976
composta em homenagem ao bicentenário
da indepêndencia norte-americana
misturando orquestra
solos vocais e instrumentais
melodias populares hinos protestantes cantos
de peles vermelhas
acompanhados da projeção de 361 desenhos
extraídos dos “diários” de thoreau
(apresentado por seiji osawa em boston
e por boulez em nova york
a obra provocou o maior êxodo de público
durante um concerto nos últimos 25 anos
segundo o comentarista allen hughes)
a john cage reader
livro-homenagem aos 70 anos de cage (1982)
registra outras tantas composições
parando provisoriamente em
postcard from heaven
(postal do céu) para 20 harpas


ultimamente cage vem dedicando
muitos trabalhos ao “finningans wake”
o mais radical e o mais musical
dos livros de joyce


em 1942 ja musicara
um pequeno trecho desta obra
the wonderful widow of 18 springs
(a maravilhosa viúva de 18 primaveras)
para voz piano fechado (sic)
numa de suas incursões
criou uma série de mesósticos”
sobre o nome de james joyce
pescados aleatoriamente do texto
(writing through finnegans wake, 1978)
numa outra viagem
escavou sons e ruídos para o seu
roaratorio, an irish circus on finnegans wake (1981)
e ele ainda promete um
atlas borealis com as 10 trovoadas
sobre 10 palavras de 100 letras
que atravessam o livro
(“a fala do trovão”)


não é preciso concordar com cage para amá-lo
(os cagistas são geralmente chatos:
traduzem demasiado literalmente as suas idéias)
mas não é possível contornar cage
ele está ali
inviável objeto
objetando


inspirado na melhor tradição norte-americana
a da desobediência civil e da não violência
de thoreau a martin luther king
esse compositor rebelde
é um notável compósito
de anarquista e construtivista
músico-poeta-designer-pensador
profeta-guerrilheiro da arte interdisciplinar
da música à poesia
da dança ao vídeo
de teipe à vida


na era do pós-tudo
em pleno musicaos de produssumo
os livros de cage
como sua própria música
são um i-ching de idéias e invenções
que nos fornecem
senão as respostas que procuramos
ao menos um novo estoque de perguntas
para nos abalar e rebelar


HAPPY NEW EAR
feliz anouvido novo (YEAR/EAR trocadilho intraduzível)
NEW MUSIC : NEW LISTENING
ou em canibalês brasileiro:
ouvidos novos para o novo
ouvir com ouvidos livres
a música está ao seu redor
por dentro e por fora
é só usar os ouvidos


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