Selection from Le Testament de François Villon - Ezra Pound
* Abaixo, trecho do texto "O testamento de Ezra Pound: Uma Antiópera", escrito por Augusto de Campos e publicado originalmente na Folha de S. Paulo (Folhetim n. 340,24.7.1983). Retirado do livro "Música de Invenção" (São Paulo : Perspectiva, 2007 - 1ª reimpr. da 1 ed. de 1998)
(cuidado!!! POST EM CONSTRUçÃO!!!)
(cuidado!!! POST EM CONSTRUçÃO!!!)
No confuso capítulo final de sua Pequena História da Música, Mário de Andrade – que não parece ter tido conhecimento da existência do poeta Ezra Pound – arrola-o entre outros compositores sob a rubrica do experimentalismo instrumental: “Também nos trios, quartetos, quintetos, apareceu uma floração nova interessantíssima, empregando os mais desusados e curiosos agrupamentos solistas (Kurt Weill, Falla, Ezra Pound, Anton Webern)”.
Não deixa de ser paradoxal que o autor dos Cantos, ignorado pelos nossos modernistas, em grande parte devido à impregnação francesa do movimento, tenha sido incluído, como músico, nas enumerações caóticas do sempre prolixo Mário de Andrade, travestido de musicólogo.
Músico, porém, Ezra Pound o foi, ainda que um musico sui generis, que só recentemente começou a ser avaliado.
Mário não esclarece a fonte de sua informação, ao que tudo indica colhida mais de ouvir dizer do que de ouvido. Mas é de presumir que lhe tenham chegado às mãos notícias da ópera Le Testament, de Pound, da qual alguns trechos foram apresentados em 1926, na Salle Pleyel, em Paris.
O interesse de Ezra Pound pela música se manifestou desde cedo quando estudava a poesia provençal. Em 1913, colaborou com William Morse Rummel (pianista alemão, neto do inventor do telégrafo e consumado intérprete de Debussy, a cujo círculo pertencia) na edição de partituras das canções trovadorescas, dentre as quais as duas de Arnaur Daniel que descobriu entre os manuscritos do século XII da Biblioteca Ambrosiana em Milão. Ele se preocupava com o ajuntamento da palavra e melodia – motz el son – que atingira extremos de perfeição na prática dos poetas-músicos de Provença. Mais tarde (1920) cooperaria com a pianista americana Agnes Bedford na edição musical de mais cinco canções occitanas, que verteria “com palavras adaptadas de Chaucer”. Interessou-se também pelo trabalho de Arnold Dolmetsch, um especialista em música antiga, que se dedicava à sua interpretação e à reconstrução de cravos (Pound o conheceu em 1914 e chegou a adquirir dele um clavicórdio).
De 1917 a 1921, vêmo-lo nos jornais londrinos, a assinalar, sob o pseudônimo de William Antheling, contundentes críticas musicais, que proclamavam Beethoven “o rosbife cotidiano da música” e promoviam a revivescência da música da Idade Media e da Renascença, com ênfase nos provençais e na idade do ouro da música elisabetana, “a era de Lawes e Campion”. Na década de 30, organizaria singulares concertos em Rapallo, desempenhando papel relevante, ao lado da violinista Olga Rudge, na recuperação das obras de Vivaldi.
Em 1923, Pound travou conhecimento com George Antheil em Paris, e passou a patrocinar o trabalho do jovem pianista e compositor americano, sobre o qual veio a escrever um livro, Antheil e o Tratado da Harmonia (1924). Influenciado por Stravinski e pelo “ruidismo” futurista, Antheil começava a criar composições de caráter acentuadamente rítmico e percurssivo – a machine music, que culminaria no Ballet Mechanique (1924-1925). A obra fora prevista para 16 pianos mecânicos e ruídos de avião. Na estreia, em 1926, no Théatre des Champs-Élysées, devido a dificuldades técnicas, só foi apresentada em oito pianos, mas com grande variedade de instrumentos de percussão e... duas hélices de avião. “Essa obra”, escreveu Pound, então, “retira definitivamente a música da sala de concerto.” Mas depois do escândalo da première nova-iorquina, em 1927, o compositor tomou outros rumos. O bad boy da música – como ele mesmo se intitulara – acabaria melancolicamente compondo musica convencional para filmes, em Hollywood.
Dez dias depois da estreia do Ballet Mechanic, deu-se a apresentação de uma insólita composição musical que o poeta Ezra Pound terminara em 1923: a “ópera” Le Testament , numa versão reduzida para tenor e baixo, acompanhados por violino, piano e um longo corne medieval que soava apenas duas notas. A estreia foi na famosa Salle Pleyel, em 29 de junho de 1926, para um público que incluia, Joyce, Eliot e Cocteau. Olga Rudge, ao violino. Antheil (que colaborou na orquestração e editou a peça em 1923), ao piano. O músico americano Virgil Thomson (que Pound considerava um “inimigo”, por sua associação com Gertrude Stein, e que em 1928 comporia com textos dela também uma ópera nada ortodoxa, Four Saints in Three Acts) compareceu à première e deu, mais tarde, um depoimento que impressiona pela isenção e precisão: “Não era propriamente a música de um músico, mas talvez a mais bela música de um poeta desde Thomas Capion... e o seu som permaneceu em minha memória”.
Basicamente uma montagem de baladas de Villon (acrescidas de uma canção de Williaume li Viniers, trovador provençal do século XIII), com narração intercalada, a “ópera” de Pound – como observaram Ned Rosem (em Música e Gente) e R. Murray Schafer, responsável por uma de suas apresentações posteriores – é mais propriamente um chant-fable, na tradição medieval, evocando Le Jeu de Robin et Marion do trouvère Adam de La Halle (c. 1240 – c. 1286), uma especie de teatro cantado, precursor da ópera cômica, expresso através de uma sucessão de árias ou canções.
A “ópera” de Pound foi revivida pela BBC, em 1931 e 1962, e no Festival de Spoletto, em 1965, sempre de forma abreviada. Somente em 1971 produziu-se a sua versão integral, sob a direção de Robert Hughes, da Universidade de California, Berkeley. Um ano depois, fez-se também a primeira gravação da obra (LP Fantasy 12001). No comentario de capa, Hughes enfatiza a originalidade do conceito instrumental poundiano: ele teria chegado a uma especie de klangfarbenmelodie (melodia-de-timbres) independentemente de Webern. A orquestração completa abrange um bizarro grupo de instrumentos para 17 executantes, com variada percussão, incluindo ossos secos, lixas e um assobio percussivo de curioso efeito. E a partitura se permite liberdades inusitadas como a de exigir que os executantes da Balada da Gorda Margô – um cantor (whiskey bass) e dois trombones – a interpretem como se estivessem bêbados, tropeçando em dissonancias bitonais, entre soluços e arrotos.
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