"MONSIEUR LE PAUVRE"
Reibert de Leeuw, 1980
Se a importância de Erik Satie como compositor fosse medida pela frequência com que sua música aparece em programas de concertos, pouco restaria de sua reputação. O nome de Satie é mencionado com frequência bem maior do que sua música é tocada.
Na maioria das obras da história da música, Satie é apenas tolerado como um pioneiro, como alguém que removeu alguns obstáculos incômodos, tornando possível aos compositores realmente importantes escreverem suas obras-primas, mas que não deve de ser levado muito a sério como compositor.
Em alguns círculos literários o reconhecimento da importância de Satie não se resumiu em vê-lo apenas como um mero autor de peças, evidentemente curiosas, mas na verdade bastante canhestras, às quais alguns outros compositores dispensaram palavras exageradamente amáveis. Jean Cocteau introduziu Satie no mundo literário e, a partir de então, ele assegurou seu lugar, sendo constantemente redescoberto por escritores intrigados pelo sincretismo sem paralelo de misticismo e absurdo, de ingenuidade e simulação encontrados em sua música e em seus escritos, e dos quais seu estilo de vida, quase excêntrico por princípio, é o reflexo.
Através das notas pouco numerosas de sua música, a obra de Satie remete a uma mentalidade, que pode ser percebida principalmente em determinadas correntes das artes plásticas e da literatura, e que só voltaria a manifestar-se na música com a obra de John Cage.
O estilo de vida de Satie, seu comportamento, sua maneira de conversar, eram excêntricos nos menores detalhes. A consistência quase rígida com que mantinha seus relacionamentos bizarros com o mundo exterior até a sua morte, demonstra que sua excentricidade não era uma fachada externa ou uma tentativa de passar por original. Mesmo que ele tenha mais de uma vez mudado as linhas através das quais essa comunicação se transmitia, seu mundo estranhamente construído permanecia quase impenetrável, a deixava todos que entravam em contato com ele constantemente perplexos.
Para início de conversa, muitos dos títulos de suas composições não enigmáticos. Ocasionalmente tinham alguma relação irônica com a música (Três valsas de requintado mau gosto), mas são, na maioria dos casos, totalmente irrelevantes – Esboços e provocações de um gordo boneco de pau, Horas seculares e instantâneas, Embriões dissecados). E volta e meia são exatamente essas peças, que são musicalmente as mais simples e, em si mesmas, as menos excêntricas, que têm seu óbvio significado oculto por detrás de títulos absurdos e, por vezes, por textos adicionais, quando menos igualmente absurdos. Nas peças que escreveu antes de 1895, Satie cultivou um envolvimento místico-religioso, inicialmente como compositor oficial dos Rosacruzes, nomeado pelo "Sâr de la Rose-Croix", Joseph Péladan. Após seu rompimento com os Rosacruzes, esse envolvimento assumiu uma forma altamente pessoal, com a fundação de sua "Église Métropolitaine d'Art de Jésus Conducteur" (Igreja Metropolitana de Arte de Jesus Condutor), da qual era maître-de-chapelle (mestre-de-capela) e único devoto. A música fornece pouquíssimos esclarecimentos sobre a natureza de seus motivos religiosos. O caráter extremamente extático das composições desta época entra em contradiçnao com seus títulos, que estão eivados de curiosas alusões místicas. As Danças Góticas, de 1893, englobam nove números, que trazem sucessivamente os seguintes títulos:
– Por ocasiçnao de uma grande dor.
– Na qual os Pais de Mui Verdadeira e Mui Santa Igreja são invocados.
– Em prol de um infeliz.
– A propósito de São Bernardo e de Santa Lúcia.
– Para os Pobres Falecidos.
– Onde questiona-se o perdão às injúrias recebidas
– Por piedade dos bêbados, envergonhados, debochados, imperfeits, desagradáveis e falsários de todos os tipos.
– Em alta honra do venerado São Miguel, o gracioso arcanjo.
– Após haver obtido a remissão dos meus pecados.
Mesmo que os títulos possam sugerir exatamente o contrário, a música consiste de peças que – exceto no tamanho º unem-se umass às outras e empregam constantemente as mesmas sequências harmônicas. A extrema monotonia da múscia está em flagrante contraste com a diversidade religiosa dos títulos.
Igualmente pouca ligação com suas preocupacnoes místicas será encontrada em Le Cartulaire de l'Église Métropolitaine d'Art de Jésus Conducteur (O Cartulário da Igreja Metropolitana de Arte de Jesus Condutor), um jornal que publicou algumas vezes, e que uspou principalmente para "excomungar", em tom exprobatório e religioso, vários críticos, em especial Gauthier-Villars, que havia-se permitido um inconvenient reparo com Wagner: "O dragão demoníaco da prevenção vos cega. Vós blasfemastes em vosso julgamento de Wagner que é, para vós, o Desconhecido e o Infinito. Quanto a Mim, posso amaldiçoá-lo tranquilamente. Minhas melodias dinásticas, Minha expressão atlética e o ascentismo de Minha vida asseguram-me o poder. Ditar estas palavras, ordeno-vos o afastamento de Minha pessoa, a tristeza, o silêncio e uma dolorosa meditação."
Em virtude destas afirmações e de sua múscia, pode-se admitir que o misticismo de Satie aproximava-se mais de uma forma de mistificação deliberadamente assumida, que de uma predisposiçnao verdadeiramente mística. Em textos ulteriores, particularmente em Mémoires d'un amnésique (Memórias de um amnésico), publicado na Revista da Sociedade Internacional de Música, o envolvimento religioso que inicialmente marcava sua comunicação com o mundo exterior, deu lugar ao absurdo e à ironia. Nas Mémoires, ele explica porque não é na verdade um músico (mas um "phonométrographe"), e descreve com toda precisão o programa diário de um artista:
"O artista deve regrar sua vida:
Eis o horário de meus atos diários:
– Despertar: às 7:18h; inspirado: das 10:23 às 11:47h.
– Almoço às 12:11h e deixo a mesa às 12:14h.
– Salutar passeio a cavalo no fundo de meu parque: das 13:19 às 14:53h. Outra inspiração: das 15:12 `s 16:07h.
– Ocupações diversas (esgrima, reflexões, imobilidade, contemplaçnao, destreza, nataçnao etc.): das 16:21 às 18:47h.
– O jantar é servido às 19:16 e terminado às 19:20h. Vem então leitura sinfônica a plena voz: das 20:09 às 21:59h.
– Meu deitar tem lugar regulamente às 22:37h. Semanalmente, despertar em sobressalto às 3:19h. (terça-feira)."
Os comentários ocasionalmente feitos por Satie sobre suas obras são, quando nada, ainda mais obscuros que a maior parte de suas composições. Além do que ele não faz qualquer tentativa para fornecer alguma informação objetiva sobre suas intenções musicais; mas a confusão que elas provocam em relaçnao à natureza da música está, indiretamente, em estreita relaçnao com a função de sua música: o texto subverte suas próprias intenções, na medida em que elas estão aparentes na múscia, da mesma forma que sua música subverte os conceitos musicais estabelecidos. A nota no programa Sócrates consistia nas seguintes palavras: "Aqueles que não compreenderem, são rogados por mim a observar uma atitude de completa sumissão, de completa inferioridade." Esta foi uma de suas últimas obras, escrita apéos ser subitamente guindado à fama com o bailado Parade, em que colaborou com Diaghilev e Picasso. Sua única reação à acolhida de Sócrates, onde ele voltou mais uma vez a confundir o público, foi a observação: "Estranho, não é?"
O encontro de Satie com Débussy e a amizade que daí surgiu, deixou muitos traços prontamente discerníveis na obra de Débussy. Para Satie esse encontro representou, em primeira instância, o fim de seu isolamento, mas na medida em que crescia a reputação de Debussy como compositor, Satie – pelo menos no que se refere ao mundo exterior – desaparecia cada vez mais em sua sombra, mesmo que, com imperturbável ritmo, ele estivesse constantemente trilhando novos caminhos, que o conduziram artisticamente bom além de Débussy.
Após o primeiro encontro deles, em 1891 – no Auberge de Clou, onde Satie estava trabalhando como pianista – Debussy reconheceu imediatamente a importância das tentativas que Satie vinha fazendo em suas primeiras, e ainda pouco conhecidas, composições, para libertar a música de um século de exaltada estética romântica, fazendo permanecer apenas o que era essencial para sua imaginação.
"Eu explicava para Débussy a necessidade para um francês de livrar-se da aventura de Wagner, que não respondia às nossas aspirações naturais. E lembrava-lhe que eu não era absolutamente anti-wagneriano, mas que devíamos ter uma música própria – se possível sem chucrute."
A maneira rigorosa pela qual, desde suas primeiras peças para piano. Satie excluia de seu estilo compor qualquer ideia de desenvolvimento dramático musical, negava o cromatismo, com sua ascensão de climax em clímax, lançando mão, ao contrário, de acordes modais estáticos, teve sobre Débussy um efeito decisivo. E a possibilidade oferecida pela música de Satie de escapar musicalmente da avassaladora torrente de Wagner, foi acolhida por Débussy com gratidão.
Débussy escreveu como dedicatória no exemplar de seus Cinco Poemas de Charles Baudelaire, que deu de presente a Satie: "Para Erik Satie, músico doce e medieval, extraviado neste século para a alegria de seu bem cordial Claude Débussy, 27 de outubro de '92."
Dependendo da receptividade de cada um, a concentração de Satie em praticamente nada, pode ter um efeito encantador ou soporífero– mágico ou enfadonho. "O tédio é profundo e misterioso", escreveu Satie, lançando assim uma pequena luz sobre a falta de interesse e a pobreza dos elementos da música. Ele batizou uma de suas composiçnoes de Missa dos Pobres. A ausência de movimento, variedade, desenvolvimento e expressão numa peça como esta ganha uma intensidade que acrescenta uma nova dimensão a conceitos como tédio e pobreza.
Em seus esforços para lançar por terra tudo o que via como uma carga supérflua – e isso era mais ou menos tudo o que os valores musicais estabelecidos representavam – Satie voltou-se para os meios musicais mais rudes: transposição e repetição. Simples transposições e repetições de sequências curtas excluem, por definição, todas as possibilidades de desenvolvimento. Quase imperceptíveis, minúsculas modificações numa transposição ou repetição de um fragmento determinado são, em algumas peças mais antigas, os únicos "eventos" que ocorrem na música.
Em um de seus desenhos – um esboço de seu prórpio busto – Satie escreveu sua observaçnao muito citada: "Vim ao mundo muito jovem em um tempo muito envelhecido". Para ele, "envelhecidos" eram não apenas os gestos musicais do romantismo, contra os quais reagiu em suas primeiras composições, mas qualquer tendência evolucionária na história da música. No fim de sua vida, Saie viu-se com alguém que não poderia fazer nada que não fosse recomeçar tudo do princípio. "Quando eu era jovem, diziam-me: "Você vai ver quando tiver cinquenta anos!' Tenho cinquenta anos; e nada vi."
tradução: Mário Willmersdorf Jr. em 1987 (transcrição para web: D. Scandurra em 2011)
Reibert de Leeuw, 1980
Se a importância de Erik Satie como compositor fosse medida pela frequência com que sua música aparece em programas de concertos, pouco restaria de sua reputação. O nome de Satie é mencionado com frequência bem maior do que sua música é tocada.
Na maioria das obras da história da música, Satie é apenas tolerado como um pioneiro, como alguém que removeu alguns obstáculos incômodos, tornando possível aos compositores realmente importantes escreverem suas obras-primas, mas que não deve de ser levado muito a sério como compositor.
Em alguns círculos literários o reconhecimento da importância de Satie não se resumiu em vê-lo apenas como um mero autor de peças, evidentemente curiosas, mas na verdade bastante canhestras, às quais alguns outros compositores dispensaram palavras exageradamente amáveis. Jean Cocteau introduziu Satie no mundo literário e, a partir de então, ele assegurou seu lugar, sendo constantemente redescoberto por escritores intrigados pelo sincretismo sem paralelo de misticismo e absurdo, de ingenuidade e simulação encontrados em sua música e em seus escritos, e dos quais seu estilo de vida, quase excêntrico por princípio, é o reflexo.
Através das notas pouco numerosas de sua música, a obra de Satie remete a uma mentalidade, que pode ser percebida principalmente em determinadas correntes das artes plásticas e da literatura, e que só voltaria a manifestar-se na música com a obra de John Cage.
O estilo de vida de Satie, seu comportamento, sua maneira de conversar, eram excêntricos nos menores detalhes. A consistência quase rígida com que mantinha seus relacionamentos bizarros com o mundo exterior até a sua morte, demonstra que sua excentricidade não era uma fachada externa ou uma tentativa de passar por original. Mesmo que ele tenha mais de uma vez mudado as linhas através das quais essa comunicação se transmitia, seu mundo estranhamente construído permanecia quase impenetrável, a deixava todos que entravam em contato com ele constantemente perplexos.
Para início de conversa, muitos dos títulos de suas composições não enigmáticos. Ocasionalmente tinham alguma relação irônica com a música (Três valsas de requintado mau gosto), mas são, na maioria dos casos, totalmente irrelevantes – Esboços e provocações de um gordo boneco de pau, Horas seculares e instantâneas, Embriões dissecados). E volta e meia são exatamente essas peças, que são musicalmente as mais simples e, em si mesmas, as menos excêntricas, que têm seu óbvio significado oculto por detrás de títulos absurdos e, por vezes, por textos adicionais, quando menos igualmente absurdos. Nas peças que escreveu antes de 1895, Satie cultivou um envolvimento místico-religioso, inicialmente como compositor oficial dos Rosacruzes, nomeado pelo "Sâr de la Rose-Croix", Joseph Péladan. Após seu rompimento com os Rosacruzes, esse envolvimento assumiu uma forma altamente pessoal, com a fundação de sua "Église Métropolitaine d'Art de Jésus Conducteur" (Igreja Metropolitana de Arte de Jesus Condutor), da qual era maître-de-chapelle (mestre-de-capela) e único devoto. A música fornece pouquíssimos esclarecimentos sobre a natureza de seus motivos religiosos. O caráter extremamente extático das composições desta época entra em contradiçnao com seus títulos, que estão eivados de curiosas alusões místicas. As Danças Góticas, de 1893, englobam nove números, que trazem sucessivamente os seguintes títulos:
– Por ocasiçnao de uma grande dor.
– Na qual os Pais de Mui Verdadeira e Mui Santa Igreja são invocados.
– Em prol de um infeliz.
– A propósito de São Bernardo e de Santa Lúcia.
– Para os Pobres Falecidos.
– Onde questiona-se o perdão às injúrias recebidas
– Por piedade dos bêbados, envergonhados, debochados, imperfeits, desagradáveis e falsários de todos os tipos.
– Em alta honra do venerado São Miguel, o gracioso arcanjo.
– Após haver obtido a remissão dos meus pecados.
Mesmo que os títulos possam sugerir exatamente o contrário, a música consiste de peças que – exceto no tamanho º unem-se umass às outras e empregam constantemente as mesmas sequências harmônicas. A extrema monotonia da múscia está em flagrante contraste com a diversidade religiosa dos títulos.
Igualmente pouca ligação com suas preocupacnoes místicas será encontrada em Le Cartulaire de l'Église Métropolitaine d'Art de Jésus Conducteur (O Cartulário da Igreja Metropolitana de Arte de Jesus Condutor), um jornal que publicou algumas vezes, e que uspou principalmente para "excomungar", em tom exprobatório e religioso, vários críticos, em especial Gauthier-Villars, que havia-se permitido um inconvenient reparo com Wagner: "O dragão demoníaco da prevenção vos cega. Vós blasfemastes em vosso julgamento de Wagner que é, para vós, o Desconhecido e o Infinito. Quanto a Mim, posso amaldiçoá-lo tranquilamente. Minhas melodias dinásticas, Minha expressão atlética e o ascentismo de Minha vida asseguram-me o poder. Ditar estas palavras, ordeno-vos o afastamento de Minha pessoa, a tristeza, o silêncio e uma dolorosa meditação."
Em virtude destas afirmações e de sua múscia, pode-se admitir que o misticismo de Satie aproximava-se mais de uma forma de mistificação deliberadamente assumida, que de uma predisposiçnao verdadeiramente mística. Em textos ulteriores, particularmente em Mémoires d'un amnésique (Memórias de um amnésico), publicado na Revista da Sociedade Internacional de Música, o envolvimento religioso que inicialmente marcava sua comunicação com o mundo exterior, deu lugar ao absurdo e à ironia. Nas Mémoires, ele explica porque não é na verdade um músico (mas um "phonométrographe"), e descreve com toda precisão o programa diário de um artista:
"O artista deve regrar sua vida:
Eis o horário de meus atos diários:
– Despertar: às 7:18h; inspirado: das 10:23 às 11:47h.
– Almoço às 12:11h e deixo a mesa às 12:14h.
– Salutar passeio a cavalo no fundo de meu parque: das 13:19 às 14:53h. Outra inspiração: das 15:12 `s 16:07h.
– Ocupações diversas (esgrima, reflexões, imobilidade, contemplaçnao, destreza, nataçnao etc.): das 16:21 às 18:47h.
– O jantar é servido às 19:16 e terminado às 19:20h. Vem então leitura sinfônica a plena voz: das 20:09 às 21:59h.
– Meu deitar tem lugar regulamente às 22:37h. Semanalmente, despertar em sobressalto às 3:19h. (terça-feira)."
Os comentários ocasionalmente feitos por Satie sobre suas obras são, quando nada, ainda mais obscuros que a maior parte de suas composições. Além do que ele não faz qualquer tentativa para fornecer alguma informação objetiva sobre suas intenções musicais; mas a confusão que elas provocam em relaçnao à natureza da música está, indiretamente, em estreita relaçnao com a função de sua música: o texto subverte suas próprias intenções, na medida em que elas estão aparentes na múscia, da mesma forma que sua música subverte os conceitos musicais estabelecidos. A nota no programa Sócrates consistia nas seguintes palavras: "Aqueles que não compreenderem, são rogados por mim a observar uma atitude de completa sumissão, de completa inferioridade." Esta foi uma de suas últimas obras, escrita apéos ser subitamente guindado à fama com o bailado Parade, em que colaborou com Diaghilev e Picasso. Sua única reação à acolhida de Sócrates, onde ele voltou mais uma vez a confundir o público, foi a observação: "Estranho, não é?"
O encontro de Satie com Débussy e a amizade que daí surgiu, deixou muitos traços prontamente discerníveis na obra de Débussy. Para Satie esse encontro representou, em primeira instância, o fim de seu isolamento, mas na medida em que crescia a reputação de Debussy como compositor, Satie – pelo menos no que se refere ao mundo exterior – desaparecia cada vez mais em sua sombra, mesmo que, com imperturbável ritmo, ele estivesse constantemente trilhando novos caminhos, que o conduziram artisticamente bom além de Débussy.
Após o primeiro encontro deles, em 1891 – no Auberge de Clou, onde Satie estava trabalhando como pianista – Debussy reconheceu imediatamente a importância das tentativas que Satie vinha fazendo em suas primeiras, e ainda pouco conhecidas, composições, para libertar a música de um século de exaltada estética romântica, fazendo permanecer apenas o que era essencial para sua imaginação.
"Eu explicava para Débussy a necessidade para um francês de livrar-se da aventura de Wagner, que não respondia às nossas aspirações naturais. E lembrava-lhe que eu não era absolutamente anti-wagneriano, mas que devíamos ter uma música própria – se possível sem chucrute."
A maneira rigorosa pela qual, desde suas primeiras peças para piano. Satie excluia de seu estilo compor qualquer ideia de desenvolvimento dramático musical, negava o cromatismo, com sua ascensão de climax em clímax, lançando mão, ao contrário, de acordes modais estáticos, teve sobre Débussy um efeito decisivo. E a possibilidade oferecida pela música de Satie de escapar musicalmente da avassaladora torrente de Wagner, foi acolhida por Débussy com gratidão.
Débussy escreveu como dedicatória no exemplar de seus Cinco Poemas de Charles Baudelaire, que deu de presente a Satie: "Para Erik Satie, músico doce e medieval, extraviado neste século para a alegria de seu bem cordial Claude Débussy, 27 de outubro de '92."
Dependendo da receptividade de cada um, a concentração de Satie em praticamente nada, pode ter um efeito encantador ou soporífero– mágico ou enfadonho. "O tédio é profundo e misterioso", escreveu Satie, lançando assim uma pequena luz sobre a falta de interesse e a pobreza dos elementos da música. Ele batizou uma de suas composiçnoes de Missa dos Pobres. A ausência de movimento, variedade, desenvolvimento e expressão numa peça como esta ganha uma intensidade que acrescenta uma nova dimensão a conceitos como tédio e pobreza.
Em seus esforços para lançar por terra tudo o que via como uma carga supérflua – e isso era mais ou menos tudo o que os valores musicais estabelecidos representavam – Satie voltou-se para os meios musicais mais rudes: transposição e repetição. Simples transposições e repetições de sequências curtas excluem, por definição, todas as possibilidades de desenvolvimento. Quase imperceptíveis, minúsculas modificações numa transposição ou repetição de um fragmento determinado são, em algumas peças mais antigas, os únicos "eventos" que ocorrem na música.
Em um de seus desenhos – um esboço de seu prórpio busto – Satie escreveu sua observaçnao muito citada: "Vim ao mundo muito jovem em um tempo muito envelhecido". Para ele, "envelhecidos" eram não apenas os gestos musicais do romantismo, contra os quais reagiu em suas primeiras composições, mas qualquer tendência evolucionária na história da música. No fim de sua vida, Saie viu-se com alguém que não poderia fazer nada que não fosse recomeçar tudo do princípio. "Quando eu era jovem, diziam-me: "Você vai ver quando tiver cinquenta anos!' Tenho cinquenta anos; e nada vi."
tradução: Mário Willmersdorf Jr. em 1987 (transcrição para web: D. Scandurra em 2011)
Nenhum comentário:
Postar um comentário