3.13 O Profeta e Guerrilheiro da Arte Interdisciplinar

3.13 O Profeta e Guerrilheiro da Arte Interdisciplinar
Folha de SP, 5.9.1982


J o h n  C a g E
poeta designer pensador
compositor intérprete escritor artista visual conferencista
Discípulo de
Henry Cowell e de Schoenberg ,
interessou-se desde cedo
pelos instrumentos de sons
indeterminados e pela
música e filosofia orientais
. E quando Schoenberg (
que lhe dava aulas de graça, com a única exigência de que ele prometesse devotar a sua vida à música
) recriminou o seu descaso pela harmonia ,
dizendo-lhe que para um músico isso significava
defrontar-se com um muro intransponível ,
o jovem Cage lhe respondeu : “
Nesse caso eu devotarei a minha vida a bater a cabeça nesse muro ”
. Foi o que fez, literalmente, passando a escrever para instrumentos de percussão , sob a inspiração de Ionisation (1931) de Varèse
.
Ao aproximar-se a década de 40 , inventou o
p i a n o  p r e p a r a d o
, um piano acondicionado com pedaços de metal, borracha e outros materiais entre as cordas, transformando-o numa
“ orquestra de percussão para único instrumento e um único executante ”
Bacanal (1938)
Amores (1943)
Sonatas e Interlúdios para Piano Preparado (1946-1948)
Concerto para Piano Preparado (1951) estão entre suas mais belas criações dessa série
.
Saudado como um precursor por Schaeffer e Boulez, na virada dos anos 50, quando se desencadeou a revolução da música concreta e eletrônica, ele não se assimilou às correntes européias. Já numa conferência de 1948 postulava a
REavaliação de Satie, colocando-o – para escandalo dos serialistas ortodoxos – ao lado de Webern (e contra Beethoven), no limiar das novas manifestações musicais.
Contra a radicalização européia
(música totalmente predeterminada,
serialização de todos os parâmetros sonoros)
, propôs uma outra radicalização :
a  m ú s i c a  i n d e t e r m i n a d a
, a partir de operações de acaso derivadas do
I   C h i n g 
. Do.Livro das Mutações chinês saiu
a Música das Mutações (1952), com
sons e silêncios distribuídos casualmente.
Fatores tão aleatórios como
o lançamento de dados
ou moedas e as
imperfeições do papel manuscrito
passaram a interferir na elaboração de suas composições
.
Um ano antes, em 1951, promovera o primeiro
h a p p e n i n g
de que se tem notícia, numa universidade experimental,
o Black Moountain College, em North Carolina.

Outras intervenções cageanas, tipo guerrilha :

Paisagem Imaginária n.2 (1951)
, para 12 aparelhos de rádio ligados ao acaso e simultaneamente;
Paisagem imaginária n.5 (1952)
: a primeira composição de tape music americana;
4’33” (1952)
: o executante não toca. Quem faz a música é o público
, provocado pelos insuportáveis minutos de silêncio
.
Aqui chegamos a um dos temas capitais de Cage :
o  s i l ê n c i o

























Um silêncio carregado de significados, provindo,
ideologicamente, da filosofia zen e musicalmente de Webern.
“A música européia poderia ser melhorada com uma boa dose de silêncio”
, disse ele , certa vez .
O  s i l ê n c i o
 , como dimensão estrutural do discurso musical ,
é fundamental em suas composições, nas quais sons e ruidos se integram sem qualquer hierarquia.
Mas o silêncio de Cage não é metafísico. É antes,
um modo de apropriação do acaso
, porque, como realidade acústica, não existe:

Nenhum som teme o silêncio que o extingue e não há silêncio que não seja grávido de som

.
Dentro de uma câmara à prova de eco, ele ouviu dois sons
                                       , um agudo  ,   outro grave :
o agudo era o seu sistema nervoso   ,  o grave o seu sangue em circuação
. .
O livro Silence inaugurou uma série de inclassificáveis
l i v r o s - m o s a i c o s
:

, misturando artigos, manifestos, conferências, poemas, aforismos e anedotas exemplares (koans).
A Year from Monday (1967)
é o segundo compêndio da visão que eu chamaria de
“ A n a r c o s m u s i c a l ”
de Cage: nesse livro ele inicia a publicação do seu
“Diário : como Melhorar o Mundo
( Você só Tornará as Coisas Piores )”
, uma série de reflexões pessoais ,
reunidas fragmentariamente numa salada de citações
, um tanto à maneira de Pound (nos Cantos) ,
mas numa dimensão discursiva mais próxima do que
B u c k m i n s t e r   F u l l e r   viria a chamar de
p     r o s a 
p o r o s a
.

Segue-se
M
(1973)
, um título sugerido pela letra “M”, escolhida ao acaso,
mas que é inicial de muitas palavras e nomes do interesse de cage:
de mushrooms a music
de Marcel Duchamp a Merce Cunningham
de Marshall Mcluhan a Mao Tse Tung
.

O último livro dessa linhagem é
Empty Words (palavras vazias) [[palavrazias]]
, de 1979 .
Nele aparecem os derradeiros fragmentos do “Diário”
, que ficou interrompido .

Sou um otimista”, diz Cage, “essa é a minha raison d’être.
Mas as notícias diárias, de certo modo, me deixaram mudo.”
Ultimamente [[artigo de 1982]], Cage vem dedicando
muitos trabalhos ao
F i n n e g a n s   W a k e
o mais radical e o mais musical dos livros de
J a m e s  J o y c e
. O compositor, que em 1942 já musicara um pequeno trecho dessa obra (A Maravilhosa Viúva das 18 Primaveras), criou uma série de “mesósticos” sobre o nome de James Joyce, pescado aleatoriamente do texto (Writings Through Finnegans Wake, 1978). Numa outra incursão, escavou sons e ruídos para o seu Roaratorio, an Irish Circus on Finnegans Wake, (1981). E ele ainda promete um Atlas Borealis com as 10 Trovoadas, sobre as dez palavras de cem letras que atravessam o livro (“a fala do trovão”)
.
As operações de acaso propostas por Cage não são, como se pode pensar, um ato de negação, “antiartístico”. Como Duchamp, o compositor (que não deixa de compor) acredita na sobrevivência da arte. O que ele pretende é uma disciplina do ego, para que o artista, ao invés de impor autoritariamente o seu próprio “eu”, aceite a contribuição do que está fora dele e até daquilo de que ele não gosta, e assim, libertado das preferências pessoais, possa se abrir a novas experiências. Se parece inevitável imitá-lo, não há, por outro lado, como eludir a “anedota exemplar”, a pergunta sem resposta em que se configura a arte em ação de Cage e o questionamento ético e estético que ele propõe.
Inspirado na melhor tradição norte-americana, a da desobediência civil e a da não-violência, de Thoreau a Martin Luther King, esse compositor rebelde é um notável compósito de anarquista e construtivista, além de ser profeta da arte interdisciplinar, da música à poesia, da dança ao vídeo, do teipe à vida.
[[...]]


H A P P Y  N E W  E A R S
Ou em canibalês brasileiro :
O U V I D O S  N O V O S  P A R A  O S  A N O S  N O V O S

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