3.12 A música Livre do Amanhã

3.12 A música Livre do Amanhã
revista SomTrês nº12 - 12/12/79 . Republicado, com ligeiras modificações no JT em 28.9.95
em Música de Invenção 127-13




Em 1967, John Cage, o revolucionário músico norte-americano,
afirmou que tinha renunciado ao prazer de compor, mas que , em compensação , transferira esse prazer para a escrita
. Por isso mesmo andava escrevendo tanto – acrescentava –, mas previa que em breve renunciaria a isso também
Felizmente , porém , Cage
não cessou nem de compor nem de escrever

composições de 67 a 79 :
1967-69 – HPSCHD, para 7 cravos e 51 fitas magnéticas. Parceria com Lejaren Hiller
1969 – SOUNDS RECEIVED ANONYMOUSLY
1969 – CHEAP IMITATION
1970 – MUSICIRCUS
1971 – MUREAU
1971 – 62 MESOSTICS RE MERCE CUNNINGHAM
1971 – WGBMTV
1971 – Os Cantos de Maldoror Pulverizados Pela Própria Assistência
1972 – BIRD CAGE
1973 – ETCETERA
1976 – LECTURE ON THE WEATHER, para 12 vozes, fita magnética e filme
1976 – RENGA WITH APARTMENT HOUSE 1776, esta última (que não é a última,
 pois há notícia de pelo menos uma nova obra posterior, os Freeman Études, para o violininsta Paul Zukofsky) foi composta em homenagem ao bicentenário da independência norte-americana. A estréia foi em Boston, com Seiji Osawa à frente da sinfônica local. Pouco depois houve a reapresentação pela Filarmônica de Nova York, conduzida por Pierre Boulez, em Fisher Hall. Um comentarista, Allen Hughes, escreveu que nunca, em 25 anos de experiência de concertos, assistiu a tamanho êxodo de público durante uma execução, mas que, ainda assim, a maioria ficou até o final e aplaudiu ou vaiou entusiasticamente ao término do espetáculo. A orquestra produzia dissonant background music, enquanto se ouviam solos vocais e instrumentais com melodias da história americana: canções judaicas, hinos protestantes, canções negras e de peles-vermelhas, estas pela voz de um representante autêntico, o Chefe Águia Veloz, que fez acompanhar o seu canto, a certa altura, de uma grande e irresistível gargalhada (parte da performance); e mais: música para órgão e marchas militares do século XVIII. Simultaneamente eram projetados 361 desenhos extraídos dos Diários de Thoreau. Como se vê, um grande happening musical na linha de trabalho que o próprio Cage já definira no título de uma de suas obras da década de 70: Musicircus.

Os  l i v r o s  de Cage são, como a sua própria  m ú s i c a ,
1961 – SILENCE
1967 – A YEAR FROM MONDAY, De Segunda a Um Ano
1969 – NOTATIONS
1973 – M - escritos de 1967-72
1979 – EMPTY WORDS, Palavras Vazias - escritos de 1973-78
Os  l i v r o s  de Cage são, como a sua própria  m ú s i c a ,
inovadores e imprevisíveis.
Em todos eles há uma  m i s t u r a  aparentemente disparatada de eventos
. Cage fala não apenas de música, mas de
ecologia, política, zen-budismo, c o g u m e l o s , economia e acontecimentos triviais,
extraindo poesia de tudo e de nada.
Um  m o s a i c o  de ideias, citações e histórias.
Os textos se apresentam em disposições graficas personalíssimas,
indo do uso de uma IBM com grande  d i v e r s i d a d e
de tipos até à combinação de numerosas famílias de letra-set;
dos signos desenhados para indicar  p a u s a s  e ruídos, como a respiração e a tosse, até as tonalidades reticulares das letras.
Uma concepção tão  a n t i a c a d ê m i c a  que só poderia mesmo chocar os meios universitários mais provincianos.

( P a l a v r a s   V a z i a s   ) . ( E M P T Y  W O R D s )
Nesse livro, Cage reúne, ao lado do Prefácio à Conferência sobre o Tempo, que tem Thoreau como tema, uma introdução ao livro O Piano Bem Preparado, de Richard Bunger, na qual rememora as suas experiencia com o piano preparado (um piano em cujas cordas ele introduziu parafusos, roscas e outros materiais, fazendo-o soar como uma orquestra de percussão), desde a primeira obra Bacchanal, de 1937. Há ainda
Empty Words (que dá título ao livro): textos e desenhos dos Diários de Thoreau, submetidos a operações de acaso, estabelecendo uma transiçao de uma “linguagem” sem sentenças (tendo somente frases, palavras, silabas e letras) a uma “linguagem” tendo apenas letras e silêncio (música). E mais: Onde Estamos Comendo? E o que Estamos Comendo? – uma colagem de reminiscências das viagens de Cage com o grupo de dança de Merce Cunningham, a partir não da música mas das comidas e dos apetites dos dançarinos pelos hotéis e motéis do mundo, incluindo algumas receitas – uma forma de questionar nossos hábitos civilizados. Esparsos por todo o livro, como cogumelos, os
Mesósticos
(diferentemente dos acrósticos, aqui os nomes se formam no meio e não no início das linhas).
Os  mais  importantes  ,  formando   o    nome    de    J a m e s  J o y c e
,   foram   extraídos   do    texto    de     F i n n e g a n s    W a k e   ,
que o compositor reconstrói em fragmentos anagramáticos .
Diz Cage que se tornou um devoto da linguagem não-sintática, “desmilitarizada”
             (
N. O. Brown   :     “a sintaxe é a organização do exército”
Thoreau  :    “ao ouvir uma sentença, ouço pés marchando”
              )
. Isso o levou  a interessar-se pela língua chinesa e pelo Finnegans Wake .
Mas ao lê-lo verificou que Joyce mantinha velhas estruturas (sintalks) em que colocou as novas palavras que inventou. Daí os mesósticos: Joyce sem sintaxe, ainda mais radicalizado. O livro contém, ademais, uma homenagem ao pintor Morris Graves, recordações de conversas com o artista e seus amigos, misturadas com citações de Sri Ramakrisha e de Jung, do I Ching e dos filósofos cristãos Epifânio e Atenágoras
. No fim de tudo,   O  F u t u r o  d a  M ú s i c a  , versão revista de uma conferência de 1974 .
E qual é o futuro da música , segundo John Cage ?
Não há como sintetizar, em tão breve espaço, todas as previsões imprevisíveis de Cage, mas é possível resumir alguns dos seus enfoques provocativos.
Para Cage , a música é inconcebível à parte da vida 
. Questões estritamente musicais não lhe parecem mais questões sérias .
Quando ele começou a “devotar sua vida à música”,
havia ainda muitas batalhas a travar dentro do campo da música .
Mas , a seu ver , jÁ estão ganhas
Já não descriminamo entre sons e ruídos. Podemos ouvir qualquer altura de som, quer seja ou não parte de uma escala temperada, ocidental ou oriental. Sons antigamente considerados desafinados são agora chamados microtons. Nossa experiência de tempo também mudou: somos capazes de perceber eventos breves que anteriormente nos teriam escapado e apreciamos outros muito longos, que há vinte anos seriam considerados intoleráveis. Nem nos preoupamos mais em saber como um som começa, continua ou acaba. Lejaren Hiller descreveu a Cage um projeto de usar o computador para construir uma “orquestra fantástica”, capaz de sintetizar sons extraordinários, começando como se fossem instrumentos de cordas tangidos com os dedos, continuando como flautas e terminando como se tocados com arco.
O  s i l ê n c i o  também foi assimilado.
Ele já não é tão perturbador como costumava ser. O mesmo aconteceu com a melodia e com o ritmo. Melodias e ritmos diferentes podem ser ouvidos simultaneamente .
Todas as harmonias são possíveis, ou nenhuma . Qualquer coisa vale .
A abertura musical terá sido ditada por várias causas
::
–..    As atividades dos compositores modernos .
–...    As mudanças da  t e c n o l o g i a  musical:
    gravadores, sintetizadores, sistemas de sons e coMputadores
    impedem que nos fixemos na música do passado ,
    embora muitas escolas, conservatórios e críticos musicais
    ainda continuem presos a ele .
–    i n t e r p e n e t r a ç ã o   d e   c u l t u r a s
    pode-se ouvir música da África , da Índia ou do Japão,
    juntamente com a música européia,
    música dos índios americando e música eletrônica .
–  +
A própria hierarquia tradicional entre compositores ,
executantes e espectadores está sendo destruída .
Três razões
:1ª    as atividades dos compositores de música “indeterminada”
    ,     Cageem que os executantes não fazem apenas o que lhe foi mandado fazer ,
    mas têm ensejo de optar e decidir, cooperando com o compositor .
2ª:.................t e c n o l o g i a  
    assim como hoje qualquer um se sente capaz
    de tirar uma fotografia , no futuro próximo ,
    usando recursos de gravação e/ou sistemas eletrônicos ,
    o     espectador se sentirá encorajdo às atividades de
        compositor e executante .
3ª    já não há diferença essencial entre música séria e música popular,
    ou, pelo menos, uma ponte existe entre elas – o uso comum dos mesmos
    sistemas de som, dos mesmos microfones, amplificadores e alto-falantes .

Cage acentua que, no caso de grande parte da música popular e de algumas músicas orientais, as distinções entre compositores e executantes nunca foram claras.
A partitura não se interpõe entre o músico e a música
. As pessoas simplesmente se reúnem e fazem som. Improvisação .
Que pode ocorrer dentro das limitações do raga e do tala hindus ou livremente , num espaço de tempo, como os sons do contexto, no campo ou na cidade .
E assim como o ritmo a-periódico pode incluir o ritmo periódico
, as improvisações livres podem incluir as estritas ,
e podem mesmo incluir composições
.  A  J a m  S e s s i o n  .  O  M u s i c i r c o  .
John Cage tem, ele próprio, exemplificado
em suas composições , livros e ações
, muitas dessas idéias
. E há mais uma barreira que vem sendo rompida por ele
. A das disciplinas artísticas, entendidas como compartimentos estanques
. Cage , músico
, é o maior poeta vivo norte-americano
. E o mais jovem
.  Suas partituras e seus livros inovam a arte gráfica e são exibidos em mostras de artes visuais
, juntamente com os seus “mesósticos” em letra-set e com os “plexigramas
” de Não Querendo Dizer Nada sobre Marcel Duchamp
( objeto com textos serigrafados em placas de plexiglás
, feito em colaboração com Calvin Sumsion
) . É ele, sem dúvida, o mais completo artista inter
- semiótico de nosso tempo, o poeta dos multimedia
: m ú s i c o p o e t a p i n t o r .
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Mas diante das pregações anárquicas de Cage e destas Palavras Vazias
objetará algum novo-engajado :
“  A o n d e   l e v a  t u d o  i s s o  ?  ”
Cage responde com Chuang-tse :
“ Havia uma árvore que dava a melhor sombra de todas .
Era muito velha e nunca fora cortada porque
a sua madeira era considerada inútil” .
E argumenta com a obra de Thoreau ,
inspirando as ações de Ghandi e de Martin Luther King .
A   d e s o b e d i ê n c i a   c i v i l   e   a   n ã o - v i o l ê n c i a
. “ A utilidade do inútil ” , diz Cage ,
“ é uma boa notícia para os artistas .
Pois a arte não tem objetivo material
. Tem que ver com a mudança de mentes e de espíritos . ”
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