3.1 INTRODUçÃO ao livro “música de invenção” (a.campos)

em Música de Invenção: pgs 9-11


No mosaico musical deste livro, composto basicamente de artigos publicados sem um propósito sistemático, a partir da década de 70, há por certo, um desenho dominante. Falo sempre, de músicos-inventores, na acepção poundiana do termo “invenção”. Não são os únicos, é claro. Tento apenas dar minha contribuição – tratando de alguns compositores da estirpe dos inventors, quase sempre pouco divulgados entre nós – para que essa forma de criação possa ser melhor identificada e fruída.
Há outros caminhos e outros sons que merecem atenção e amor, no imenso universo da música. Eu mesmo, em outros passos, me concentrei em áreas diferentes, como a da nova música popular brasileira, nos anos 60, quando o seu movimento de proa, o tropicalismo, era combatido e incompreendido, para defender os seus jovens protagonistas. Dirão que, ainda aí, se tratava de músicos-inventores, na faixa de proposta da música popular. É verdade. Esta, porém, é uma batalha vencida, com os principais expoentes daquela notável geração de artistas da canção hoje entronizados em merecida posição de destaque e com ampla difusão em nosso cenário cultural. E aquele foi um caso excepcional de tensão da música popular para a informação nova – um momento privilegiado que mobilizava as forças vivas da cultura brasileira para o seu entendimento.
Preocupa-me, nos últimos tempos, sobretudo, a dessensibilização auditiva em relação à música contemporânea. Não me conformo com o fato de a maravilhosa aventura de alto repertório criada em nosso século, uma das mais ricas de toda a história da humanidade, ser tão mal conhecida e divulgada entre nós, desfavorecida, com tem sido, pela preguiça auditiva e pela avidez mercantil das mídias.
A audição qualificada não pode reduzir-se à música de entretenimento, por mais agradável e bem realizada que seja esta. Já é tempo de dar um tempo aos colchões sonoros da música palatável e aprender a ouvir aquela outra música, a música-pensamento dos grandes mestres e inventores, que impõe uma outra escuta, onde a reflexão, a concentração, a sensibilidade e a inteligência são ativadas ao extremo. Curtir as excelências da nossa música popular, cuja sofisticação e qualidade são inegáveis, é altamente positivo. Saber ler os traços da originalidade e da criatividade do seus autores – inventores, também, no seu âmbito repertorial – é indispensável. Nada, porém, pode substituir a exemplaridade da aventura ética e estética dos grandes inventores da música contemporânea, os santos e mártires da nova linguagemm, aqueles que enfrentaram preconceitos e perseguições e, às vezes, até a pobreza material e a humilhação para alargar o horizonte da nossa sensibilidade e levar a indagação musical aos seus últimos limites.
O trabalho dos inventores é o mais pedregoso e sofrido, pela própria natureza da sua atividade, que é a de desbravar caminhos, conflitando com o repertório habitual. Por isso mesmo, se alguns conseguiram sucesso após os primeiros percalçoes de suas carreiras, quase todos só chegaram a ter sua obra resgatada em idade provecta, ou até post portem. Faz-se necessário lutar ainda – e muito – por eles. É preciso que as pessoas se conscientizem de que não saber ouvir a sua música é o mesmo que não saber ver um quadro de Picasso ou de Klee, de Maliévitch ou de Mondrian, não acompanhar as aventuras escultóricas de Brancusi ou de Calder, ser incapaz de compreender as intervenções libertadoras de Duchamp. ou ignorar a poesia de Pound e de cummings, a prosa antinormativa de Joyce ou de Oswald. É, em suma, privar-se de uma fonte preciosa e insubstituível de alimentação cultural.
O Brasil é um país que tem fama de músical mas se permite o luxo de jamais ter prensado ou reprensado alguns dos ítens mais decisivos e fundamentais da música do século – de Schoenberg, Webern, Berg, Varèse, tão escassa ou nulamente representados em nossos catálogos. Nem falar de Ruggles, Cowell, Scelsi, Nancarrow, Ustvólskaia, Nono, Feldman, e dezenas de outros inovadores, grandes músicos, quase todos nunca editados entre nós.
Quem quiser que aceite esse escândalo-recorde de desinformação. Este livro o denuncia e o renega.
Aqui são abordadas questões a que a música contemporânea de invenção deu respostas admiráveis ou a propósito das quais formulou perguntas imprevistas e instigantes e, talvez, “perguntas sem resposta”, como as quis Charles Ives. As relações entre a palavra e o som, que Pound fez aflorar, a partir do motz e’l son provençal, em sua “ópera” Le Testament, e a inovadora experiência “intermídia” do cantofalado de Schoenberg. A antimúsica, do humor pré-dadá de Satie aos caoskoans de Cage. A nova música: Webern, o limiar, arquiteto do som-silêncio e da “melodia de timbres”. Varèse, o insubordinável profeta do som-ruído. As explosões sonoras de Cowell, Antheil e Nancarrow. As últimas e radicais perquirições da música-limite dos compositores-enigma, Scelsi, Nono, Ustvólskaia. A retomada das propostas em prol da regeneração da escuta. Happy new ear! Risvegliare l’orecchio! Ouvir as pedras! Nas entrelinhas e apêndices, um pouco da história da guerrilha artística. A novela da publicação do livro De Segunda a Um Ano, de John Cage, que levou anos para ser editado no Brasil, e uma apaixonada defesa da música de Boulez, na década de 50, quando poucos ainda o conheciam e valorizavam.
Como disse Smetak, outro compositor da linhagem dos pesquisadores-inventores, coisa nossa: “Salve-se quem souber”. Sem abertura, a música tende ao conformismo e à mediocridade. “Baste a quem baste o que lhe basta / o bastante de lhe bastar! / A vida é breve, a alma é vasta: / Ter é tardar

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