3.5 O Testamento de Ezra Pound: Uma Antiópera

Folha de S. Paulo “Folhetim” n. 340 . 24/7/1983
em Música de Invenção pgs 27-32


[[trata-se de um texto descrinformativo sobre a carreira musical de Pound]]

No confuso capítulo final de sua Pequena História da Música, Mário de Andrade – que não parece ter tido conhecimento da existência do poeta Ezra Pound – arrola-o entre outros compositores sob a rubrica do experimentalismo instrumental: “Também nos trios, quartetos, quintetos, apareceu uma floração nova interessantíssima, empregando os mais desusados e curiosos agrupamentos solistas (Kurt Weill, Falla, Ezra Pound, Anton Webern)”.
Não deixa de ser paradoxal que o autor dos Cantos, ignorado pelos nossos modernistas, em grande parte devido à impregnação francesa do movimento, tenha sido incluído, como músico, nas enumerações caóticas do sempre prolixo Mário de Andrade, travestido de musicólogo.
Mário não esclarece a fonte de sua informação (colhida mais de ouvir dizer do que de ouvido ?)
Músico, porém, Ezra Pound o foi, ainda que um musico sui generis, que só recentemente começou a ser avaliado.

LE        TESTAMENT DE VILLON  (1923  >   Uma ópera de Pound]

'


, teve alguns trechos apresentados em 1926, na Salle Pleyel,
em Paris. Estreia essa, que se deu dez ...* (
    O interesse de Ezra Pound pela música se manifestou desde cedo quando estudava a poesia provençal. Em 1913, colaborou com William Morse Rummel (pianista alemão, neto do inventor do telégrafo e consumado intérprete de Debussy, a cujo círculo pertencia) na edição de partituras das canções trovadorescas, dentre as quais as duas de Arnaur Daniel que descobriu entre os manuscritos do século XII da Biblioteca Ambrosiana em Milão. Ele se preocupava com o ajuntamento da palavra e melodia – motz el son – que atingira extremos de perfeição na prática dos poetas-músicos de Provença. Mais tarde (1920) cooperaria com a pianista americana Agnes Bedford na edição musical de mais cinco canções occitanas, que verteria “com palavras adaptadas de Chaucer”. Interessou-se também pelo trabalho de Arnold Dolmetsch, um especialista em música antiga, que se dedicava à sua interpretação e à reconstrução de cravos (Pound o conheceu em 1914 e chegou a adquirir dele um clavicórdio).
De 1917 a 1921, vêmo-lo nos jornais londrinos, a assinalar, sob o pseudônimo de William Antheling, contundentes críticas musicais, que proclamavam Beethoven “o rosbife cotidiano da música” e promoviam a revivescência da música da Idade Media e da Renascença, com ênfase nos provençais e na idade do ouro da música elisabetana, “a era de Lawes e Campion”. Na década de 30, organizaria singulares concertos em Rapallo, desempenhando papel relevante, ao lado da violinista Olga Rudge, na recuperação das obras de Vivaldi.
Em 1923, Pound travou conhecimento com George Antheil em Paris, e passou a patrocinar o trabalho do jovem pianista e compositor americano, sobre o qual veio a escrever um livro, Antheil e o Tratado da Harmonia (1924).

A N T H E I L
Influenciado por Stravinski
e pelo “ruidismo” futurista
, começa a fazer composições de caráter acentuadamente rítmico e percurssivo
-        a m  achine
-        a music   -
Ballet Mechanique  (1924-1925)
Ba
prevista para 16 pianos mecânicos e ruídos de avião.
POUND: “Essa obra retira definitivamente a música da sala de concerto.”
Na estreia, em 1926, no Théatre des Champs-Élysées, devido a dificuldades técnicas, só foi apresentada em oito pianos, mas com grande variedade de instrumentos de percussão e...
duas hélices de avião.
Mas depois do escândalo da première nova-iorquina, em 1927, o compositor tomou outros rumos. O bad boy da música – como ele mesmo se intitulara – acabaria melancolicamente compondo musica convencional para filmes, em Hollywood.

) * ... dias depois da prémiere do Ballet Mechanic.
Pound a terminou em 1923 e
se trata de uma insólita composição musical :

Le Testament de Villon
A estreia foi na famosa Salle Pleyel, em 29 de junho de 1926
(numa versão reduzida para tenor e baixo, acompanhados por violino, piano
e um longo corne medieval que soava apenas duas notas),
para um público que incluia, Joyce, Eliot e Cocteau. Olga Rudge, ao violino.
Antheil (que colaborou na orquestração e editou a peça em 1923), ao piano.
O músico americano Virgil Thomson (que Pound considerava um “inimigo”, por sua associação com Gertrude Stein, e que em 1928 comporia com textos dela também uma ópera nada ortodoxa, Four Saints in Three Acts)
 compareceu à première e deu, mais tarde, um depoimento que impressiona pela
isenção e precisão:
“Não era propriamente a música de um músico, mas talvez a mais bela música de um poeta desde Thomas Capion... e o seu som permaneceu em minha memória”.
Basicamente uma montagem de baladas de Villon (acrescidas de uma canção de Williaume li Viniers, trovador provençal do século XIII), com narração intercalada, a “ópera” de Pound
– como observaram Ned Rosem (em Música e Gente) e R. Murray Schafer,
responsável por uma de suas apresentações posteriores –
é mais propriamente um chant-fable, na tradição medieval,
evocando Le Jeu de Robin et Marion do trouvère Adam de La Halle (c. 1240 – c. 1286),
uma especie de teatro cantado, precursor da ópera cômica,
 expresso através de uma sucessão de árias ou canções.
 Somente em 1971 produziu-se a sua versão integral,
sob a direção de Robert Hughes, da Universidade de California, Berkeley.
Um ano depois, fez-se também a primeira gravação da obra. No comentario de capa [[do LP]], Hughes enfatiza a originalidade do conceito instrumental poundiano:
ele teria chegado a uma especie de
K L A N G F A R B E N M E L O D I E( MELODIA - de - TIWBRES( MELODIA - de - TIWBRE  ( MELODIA - de - TIWBRES) independentemente de Webern
A orquestração completa abrange um bizarro grupo de instrumentos para 17 executantes, com variada percussão, incluindo ossos secos, lixas e um assobio percussivo de curioso efeito. E a partitura se permite liberdades inusitadas como a de exigir que os executantes da Balada da Gorda Margô – um cantor (whiskey bass) e dois trombones – a interpretem como se estivessem bêbados, tropeçando em dissonancias bitonais, entre soluços e arrotos.

O LP contendo Le Testament de Villon surpreendeu a critica. Em The New York Times, de 25 de abril de 1973, John Rockwell saudou-o num breve mas entusiástico artigo: “Opera With Music by Ezra Pound Proves Fascinating”. Nele, ressaltava:
“o que torna a opera tão idiossincrática é a instrumentação. Ela é cheia de sons exóticos (por exemplo, a flauta nasalizada) e de distribuições fragmentárias, pontilhistas, de diversos instrumentos numa única linha
”.“
sua música parece não ter qualquer conexão com os últimos 300 ou 400 anos! ”
comentário de 1924, Antheil advertia, comparando a obra do poeta-compositor à pintura naif de Rousseau.
já M. Schaefer classifiava LE TESTAMENT DE VILLON como uma
“obra de arte inclassificável
+
O interesse em torno de Le Testament, foi reaceso, mais recentemente, no Festival da Holanda, de 1980, onde foi apresentada como “uma ópera que não é uma ópera”, ao lado de novidades de vanguarda, como o drama musical Licht, de
S  t  o  c  k  h  a  u  s  e  n
, do qual se ofereceram alguns fragmentos.
Desta feita, Le testament teve a direção de
Desta feita, Le testament teve a direção de
>
, figura importante do cenario musical holandês. Nascido em 1938, Leeuw é, além de compositor e regente, autor de um livro sobre Charles Ives e tem um acervo de gravações muito significativo  :

Satie : As primeiras Obras para Piano - 1975
Foi o crítico J. Jota de Moraes, em um de seus agudos comentarios, quem chamou a atenção para a singularidade da leitura pianística de Leeuw, numa execução “lenta, lentíssima, fazendo a linguagem de Satie tocar a arte balinesa das orquestras gamelang”.
A mim, nunca um intérprete me pareceu tão próximo do sem-tempo sugerido por Satie
(as  G n o s s i e n n e s, como se sabe, não têm barras de compasso)
e nunca o aproximou tanto de Cage, se se pensa nas obras para piano-preparado,
para não falar de Cheap Imitation (Imitação Barata),
uma paráfrase de Satie que o compositor americano derivou de
uma apropriação aleatoria da linha melódica de
Socrate.

Antheil : Ballet Mécanique, A Jazz Symphony, Violin Sonatas n. 1 & 2

S c h o e n b e r g
Devo também ao nosso excelente crítico musical o conhecimento de uma outra proeza de Reinbert de Leeuw, registrada no disco Arnold Schoenberg, Wien, Wien, Nur Du Allein em 1981: aqui, com o grupo Schoenberg Ensemble, por ele fundado em 1974, Leeuw se dedica a recriar momentos raros de uma face menos conhecida do
i n v e n t o r     d o    d o d e c a f o n i s m o
os arranjos para valsas de Strauss, para uma melodia de Schubert, e até (pasme-se) para a famosa canção napolitana Funiculì Funiculà, além de outras composições menores do próprio Schoenberg e de uma belíssima, quase-ivesiana transcrição instrumental da Berceuse Elegiaque de Busoni– obras em que o mestre do Grupo de Viena exibe toda a sua perícia de orquestrador, chegando a uma transparência medular nas versões de Rosen aus dem Süden e Kaiserwalzer de Strauss.
<
Essa digressão
a respeito de Reinbert de Leeuw se faz necessária
para que se identifique melhor o contexto
em que a “ópera” de Pound ressurge
, despertando, de novo, controvérsias e entusiasmos, como se lê na revista Key Notes n. 12, de 1980, editada em Amsterdã, que dá ampla cobertura ao festival Holandês. Dois artigos (...) debatem a obra e a sua realização por Leeuw.:

• Le Testament de Villon, de Willian Schoen, crítico de ópera do semanário Vrij Nederlan (...), Assevera Schoen que o impacto da criação de Pound sobre o estudioso de ópera contemporânea é
“algo análogo à descoberta do homem de Neandertal para o paleontólogo do século XIX” (...)
“em O Testamento, Pound ignora cinco séculos de arte do canto e da ópera
para reconstruir a última época em que a poesia e a música formavam uma unidade indivisível; isto é, o século XV de Villon”.
(...)
“o acompanhamento de Pound consiste em formas primitivas de polifonia, mas a melodia segue as irregularidades do texto tão meticulosamente – com mais preocupação com o ritmo do que com o metro e menos ênfase no ritmo que na prolação, registrando as menores sílabas e até as letras – que qualquer definição puramente musical de melodia vai pelos ares”.
A complexidade rítmica da peça foi ressaltada, aliás, por todos os seus comentadores, entre os quais Robert Hughes, que aponta as rápidas alternâncias nos metros extravagantes de 7/6, 11/16, 19/32 e 25/32, no trecho n. 5, em que se inclui a Balada da Velha Prostituta, La Haulmière, lamentando a mocidade perdida.

• Le Testament de Villon or An Error Coumpounded, de Keith Freeman
(jovem musicólogo), para ele
a intenção da obra é clara
– não fazer nada para obscurecer e tudo para iluminar a transmissão
das palavras e da música inerente à poesia –
[[e, por isso,]] critica a apresentação da ópera na espostação emocional que lhe deu Reinbert de Leeuw. O crítico objeta especialmente ao tom vociferante e martelado que se imprimiu ao canto, em diversas passagens, o que tolda a clareza da emissão e ao mesmo tempo empobrece a sutileza rítmica do texto.

(...)
A conclusão a que cheguei é que as duas leituras de certo modo se complementam, oferecendo-nos
uma oportunidade rara de conviver
intimamente
com as idéias musicais do poeta e com a sua bela e estranha criação.
(...)
O leitor há de desculpar o caráter informativo-descritivo que acabou tomando conta deste artigo, ainda mais quando não há qualquer possibilidade de conseguir os discos no Brasil sendo difícil, senão impraticável, até mesmo a importação individual, além de onerosa. Infelizmente, não nos restas outra alternativa. Um dos sintomas da miséria intelectual a que este país foi lançado, entre outras misérias, são as dificuldades crescentes para se estar ou manter culturalmente informado. A música – e me refiro em particular à de índole culta ou erudita – é uma das áreas mais desprotegidas e mais severamente castigadas pela desinformação e pela grosseria dos veículos de comunicação. Pode-se mesmo asseverar, sem exagero, que o Brasil é um dos países mais atrasados do mundo em matéria de informação musical. Basta que se diga que, neste ano, centenário de nascimento de dois gênios, duas personalidades fundantes da música contemporânea –
A n t o n  W e b e r n  e  E d g a r d  V a r è s e
–, as nossas gravadoras insistem, com o descaso e/ou a ignorância costumeiros, a não nos oferecer nenhum item desses autores, dos quais, até hoje, no Brasil, só foram apresentadas duas composições com selo nacional: Ionisation (1933) de Varèse –, pouco mais de quatro minutos –, que apareceu, nos anos 50, num LP-teste de alta fidelidade, Breaking the Soud Barrier – Vol. 1 – Percussion, e Variações para Piano, Op. 27 (1937) de Webern – menos de seis minutos –, graças à iniciativa da pianista Clara Sverner, que a inclui no excelente disco que gravou para a etiqueta London, em 1974.
Sobre Webern, cuja grandeza paira acima de quaisquer ignóbeis e retrógradas tentativas de vilificação, escreveu Boulez, em 1961:

Webern permanece o limiar da música nova:
todos os compositores que não experimentaram profundamente
.e não compreenderam a inelutável necessidade de Webern
são perfeitamente inúteis
“.
Como se vê,
apesar desses 10 minutos a mais, a nossa
continua sendo apenas uma pequena história da música.

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