3.10 Viva Webern

3.10 Viva Webern
Folhasp, folhetim. nº359 4/12/83
Em Música de Invenção, pgs. 105-111


[[ Artigo sobre a obra de Webern ]]

Se considerarmos que Debussy e Satie, os mais velhos, já eram grande inovadores antes do despontar do século XX, podemos afirmar que o solo da música deste século terá sido explodido ou implodido, basicamente, por cinco grandes “inventores” :
Schoenberg e Ives, nascidos em 1874
Stravinski, em 1882
e Webern e Varèse, 1883
. A esses nomes se devem acrescer os dois mestres – se menos inovadores, não menos notáveis –, Bela Bartok, nascido em 1881, e Alban Berg, em 1885. Uma geração a que correspondem, literalmente, como pontos de referência, os “inventores”
Gertrude Stein 1874
James Joyce 1882
Ezra Pound 1885
. Em artes plásticas, um arco criativo que vai
de Mondrian 1872
e Maliévitch 1878
a Duchamp 1887
passando obviamente pelo cubismo de Picasso 1881
.
Anton Webern e Edgard Varèse –
aqueles, dentre os músicos, cuja obra mais se projeta no futuro –
têm, portanto, o seu centenário de nascimento comemorado nesse ano [[artigo escrito em 1983]]. Dois músicos-profetas:
Webern, “o profeta de um novo cosmos musical” (E. Krenek).
Varèse, “o mais selvagem dos compositores-profetas” (Paul Rosenfeld).
Por coincidencia, ambos deixaram obra reduzida, mas densa e concentrada (nos dois casos, cabe, essencialmente, num álbum de quatro discos). Por coincidencia, ambos, após uma vida de dificuldades e provações, marcada pela coerencia e pela tenaz fidelidade aos seus ideais, só obtiveram tardio reconhecimento do seu valor. Um reconhecimento que Webern, assassinado tragicamente em 1945, não chegou a conhecer, mas do qual Varèse, que só veio a falecer vinte anos depois, aos 82 anos, pode desfrutar a partir do extraordinario surto de renovação musical que eclodiu nos anos 50 - a era de Boulez e Stockhausen, de Cage e da música concreta e eletrônica.
Varèse ver-se-ia, em breve, nessa década privilegiada [1950], como único sobrevivente dos inovadores malditos da música moderna (já que Stravinski, como Picasso, foi sempre reconhecido, ainda que nem sempre pelo melhor de sua obra). Ao findar da guerra, já estavam mortos Berg (em 1935), Webern e Bartok (1945). Schoenberg desapareceria em 1951, antes de assistir à espetacular conversão de seu antagonista Stravinski (via
Webern) ao dodecafonismo, em 1952. E Ives, em 1954, antes de que tomassem conhecimento de suas premonições (suas” descobertas patenteadas pelo silêncio de um meio musical atrasado de meio século” como disse Stravinski).
Embora Webern não tivesse conhecido a redenção de sua obra, nenhum músico moderno terá como ele merecido tão unanime consagração dos compositores que a partir dos fins dos anos 40 imprimiram novos rumos à música contemporânea. Da música serial à música indeterminada – da rigorosa ortodoxia de Boulez à “desobediencia civil” das composições casuais de Cage –, jamais faltou a presença de Webern no limiar da revisão crítica da linguagem musical que então se processou. Na perspectiva de Boulez, posta, fundamentalmente, a partir do encontro entre a “complexidade do vocabulário morfológico e sintaticamente complexo desenvolvido por Webern”. Sob a ótica de Cage, vista numa dessacralizadora conjunção com Satie.
    Aqui vai uma pequena mas expressiva constelação de opiniões/definições sobre o significado de Webern para a música contemporânea:
   
Boulez: “Webern é o limiar...” (1954)
Stockhousen: “[...] Webern se torna um marco: nenhum compositor pode atuar com uma clara consciência, agora ou no futuro, abaixo do nível de linguagem desta música, e a ignorância não serve de excusa.” (1955)
Pousseur: “Fala-se, em física contemporânea, de uma tendência da matéria à sua mais alta probabilidade. Com Webern desponta uma música onde é igualmente segundo um princípio probabilístico que serão distribuídos os elementos, os quanta. Um novo conhecimento do mundo – que é também um novo modo de existência –se faz acompanhar de uma estruturação nova, infinitamente mais móbil, do espaço sonoro constituído pela obra musical.” (1954)
Stravinski: “Webern, a Esfinge, legou todo um fundamento, assim como uma sensibilidade e um estilo contemporâneos. [...] Para mim, Webern é o justo da música, e não vacilo em amparar-me sob a proteção benéfica de sua arte ainda não canonizada.” (1959)
Boulez: “Webern foi o maitre à penser de toda uma geração, desforra póstuma contra a obscuridade que ocultou sua existência. Desde agora, pode-se considerá-lo como um dos maiores músicos de todos os tempos, homem indelével” (1961)
Na Alemanha nazista sua obra fora proscrita, como
“bolchevismo cultural” ou “arte degenerada”,
a partir de 1939.
Sua obra recobre o período de 1908 a 1943
                                             ( 37 anos             )
, constituindo-se de “apenas”    31 composições (numeradas)
:
 G R A V A Ç Õ E S
:
[a mais antiga é de 1957, com regência de Robert Craft – op. 1 a 31
(incluindo o Ricercare de Bach e um Quinteto para cordas e piano, de 1906) ]...
[em 1979, nova gravação, agora com regência de Pierre Boulez – op. 1 a 31
(incluindo o Ricercare e o arranjo para as Danças Alemãs de Schubert)
]
As 31 obras que integram o catálogo das composições numeradas por Webern, produzidas em 37 anos de vida criativa, cabem, pois em quatro discos e podem ser ouvidas em menos de três horas. A mais longa, Cantata, op.31, dura entre dez e 14 minutos. As mais curtas, de dois a três minutos, com movimentos ou “peças” de até 15 segundos.
N o n  M u l t a  s e d  M u l t u n

 não muito (quantidade)
 mas muito (qualidade)

era o seu lema,
Poucas obras de um compositor, em toda a história da música, apresentam tanta coerência, em conjunto. Se excetuarmos a Passacaglia, op.1, de 1908, ainda tributária do último romantismo alemão, as demais obras, a partir do op. 2 – um impressionante coral misto a capela, inteiramente canônico – já exibem as características de concisão e condensação que irão marcar seu estilo, impregnado de atonalismo desde o op. 4 (Cinco Canções de Stefan George), também de 1908, como a anterior.

poucas obras de um compositor, em toda a história da música,
apresentam tanta coerência, em conjunto
”     .:.
”     .:.
Op. 1 –     Passacaglia (1908)
    tributaria do último romantismo alemão
Op. 2 –    Entflieht Auf Leichten Kähnen (1908)
    um impressionante coral misto a capela, inteiramente canônico.
Op. 4 –    Cinco canções de Stafan George (1908)
    primeira composição atonal de Webern
Op. 5 –    Cinco Movimentos Para Quarteto de Cordas (1909)
    onde a pesquisa sonora o leva a extrair dos instrumentos as sonoridade mais imprevistas
    (dinamica funcional e contrastante)
Op. 6 –    Seis Peças para Orquestra (1910) –
    antecipa, na pratica, a teoria schoenberguiana da




    , linguagem que irá cristalizar-se definitivamente
    nas ultra-aforísticas
    (op. 9 e op. 10) :
Op. 9 –     Seis Bagatelas para Quarteto de Cordas (1913) –
    a propósito das quais escreveu Schoenberg, em 1924: “Considere-se que sobriedade exige uma expressão tão concisa. Cada olhar pode-se desenvolver num poema, cada suspiro num romance. Mas para encerrar todo um romance num simples gesto, toda uma felicidade num suspiro, é preciso uma concentração capaz de banir todo o derramamento sentimental. Estas peças só serão compreendidas por aqueles que crêem que só se pode exprimir com os sons aquilo que não se pode exprimir a não ser com os sons”. e
Op. 10 – Cinco Peças para Orquestra (1915) –
    onde Webern aperfeiçoa o uso orquestral da melodia-de-timbres
Op. 11 – Três Peças Curtas para Violoncelo e Piano (1914) –
    verdadeiros haicais musicais. M i c r o c o s m u s h a i c a i s
    , para defini-los numa p a l a v r a - v A l i s e à maneira de J o y c e
    .
Op. 12 a Op. 19 –
    F A S E  V O C A L  (1915 - 1919)
“(...) um período peculiar na carreira do compositor, pois são 12 anos (1915-1926) consagrados à música vocal. De uma primeira fase em que a voz se faz acompanhar pelo piano, Webern evolui para combinações sonoras cada vez mais ousadas para as quais convoca insólitas combinações de instrumentos - do violão e da clarineta em mi bemol (Op. 18) a uma formação que abrange flauta, clarineta, clarineta-baixo, trompa, piston, trombone, carrilhão, harpa, violino, violoncelo e contrabaixo (Op. 13), ou à complexidade polifônica do Op. 19 para coro misto (quarteto vocal) e conjunto instrumental (clarineta, clarineta-baixo, celesta, violão e violino). Nos Op. 18 e 19 – “as obras difíceis” como as denomina Robert Craft – trabalha com uma rede de vozes super e interpostas para elaborar um intrincado tecido polifônico que nos remete aos mestres flamengos do século XV, que Webern tanto admirava (ele doutourou-se com uma tese sobre Heinrich Isaac).
    Webern retorna às composições puramente instrumentais nos
Op. 20 a 24 (1927-1934) –
    , período que Boulez classifica de “didático” – uma expressão que parece menos feliz, por poder induzir à ideia de obras escolásticas ou demonstrativas, quando aqui estão, a meu ver algumas das mais perfeitas, das mais caracterologicamente weberianas, de Webern, especialmente a Sinfonia Op. 21, o Quarteto Op. 22 e o Concerto Op. 24. De minha parte, prefiro chamar de “período radical”. Aqui, Webern, em plena maturidade, consolida a sua evolução (desde o Op. 17, ele utiliza o método dodecafônico), compondo sob a nova disciplina com uma cursividade, pode-se dizer, congenial. Ninguém foi tão claro e tão preciso, tão fácil – por paradoxal que isso possa parecer – no difícil. “Entendo a palavra arte como significando a faculdade de apresentar um pensamento da maneira a mais clara e compreensivel”, dizia ele numa carta a Hildegard Jone, de 6.8.1928. Por essa época Webern vinha de concluir a composição da
    :
op.  2 1 – S i n f o n i a (1928)
. Embora partindo de elementos da tradição clássica, a forma-sonata, no 1º movimento – Webern chega no reverso, a uma anti-sinfonia.
U m a  s i n f o n i a  e m  c o m p r i m i d o s
. Os enormes i n t e r v a l o s   e             p a u s a s   e
a melodia-de-timbres aplicados como elementos estruturais, e não decorativos, rompem os elos frásicos e as “tentações cadenciais do antigo sistema tonal” – como observa Claude Rostand – induzindo a um conceito de música espacial
.
No
OP. 22 – Quarteto para Violino Clarineta, Sax-tenor e Piano (1930)
, é onde a fluência dessa linguagem atomizada se acentua
.
No
OP. 24 – Concerto para 9 Instrumentos (1934)
, Webern logrou descobrir uma estrutura modelar, única: ele constrói uma série básica, com quatro grupos de três sons, em intervalos de uma segunda menor e de uma terça maior, que constituem, por sua vez, uma microssérie com seus desenvolvimentos (retrógrado, inversão e inversão-retrógrada). Cada um desses grupos de três sons aparece quatro vezes no conjunto das 48 formas seriais, de tal sorte que todo o material compositivo fica reduzido a 12 formas. A Webern, este achado fez lembrar o quadrado-mágico grafitado nas ruínas de Pompéia (século I) :
S   A   T   O   R
A   R   E   P   O
T   E   N   E   T
O   P   E   R   A
R   O   T   A   S

“o semeador mantém a obra/a obra mantém o semeador” [[...]] O resultado é uma obra de cristalina coerência, de um continuo interespelhar-se, a justificar a expressão de Herbert Eimert, quando cognominou Webern
“ o  a r q u i t e t o  m o n á d i c o  d a   f o r m a - e s p e l h o ”
.
OP 23, 25, 26, 29 e 31 – textos de hildegarde jone
Desde o Op. 23 (Três Lieder de “Viae Inviae”) Webern passara a musicar textos de sua amiga Hildegard Jone cuja poesia pós- (ou sub, diria Boulez) goethiana, embora sem alta qualidade literária, encontrou funda ressonância nele, provavelmente pelos seus temas
panteístas ( alpinista e botânico amador, Webern cultuava a natureza ) .
[[...]] Ele isola vocábulos, decompõe-nos a golpes de altura, pausas e timbres, depura-os, e os restitui intactos, renovados, em suas obras. Dessa conjunção nasceram, além daquela peça, os Op.25, 26, 29 e 31; nas duas últimas – as Cantatas –, terminadas em 1939 e 1943, Webern retoma e amplia a matriz experiencial das complexas polifonias neoflamengas dos Op. 18 e 19.
As demais obras instrumentais de Webern,
o Trio para Cordas, Op. 20 (1927), as Variações para Piano, Op. 27 (1939), o Quarteto para Cordas, Op. 28 (1938) e as Variações para Orquestra, Op. 30 (1940), se inscrevem, todas, na perspectiva de rigor estrutural que ele traçou, caminhando, porém, para uma concepção ampla, de “metamorfose perpétua” (expressão do próprio Webern), a partir de uma série básica. Uma concepção cada vez mais livre. Livre, inclusive, do constrangimento dodecafônico, já que evolui para um território onde a própria materialidade sonora – os timbres, as intensidades, as durações, os silêncios – tendem a prevalecer sobre o método.

(...)
Os constantes bombardeios de Viena e a morte do filho, em 14 de fevereiro de 1945, tirariam ao compositor a tranqüilidade e a concentração necessárias para conclusão dessas obras. Em 15 de setembro, após o fim da guerra, ele viria a morrer, acidentalmente, assassinado por um soldado americano
[[

 Webern nazista ? ñ ñ ñ
ñ – Augusto cita uma conferência em Viena (1933), onde Webern afirmara:
“Agora, ‘bolchevismo cultural’ é o nome dado a tudo o que se refira a
Schoemberg, a Berg e a mim (assim como Krenek). Imaginem o que será destruído,
arrasado por esse ódio à cultura! [...] Eu não sei o que Hitler entende por ‘música nova’,
mas sei que o que nós designamos por esse termo é um crime para essa gente”.
ñ – Webern era impedido de reger e de ver executadas as suas composições, só conseguia sobreviver, e a duras penas, como professor particular de alguns poucos alunos e como revisor e leitor da Universal Edition (que, após 1937, deixou de editar suas obras, devido à interdição nazista).
ñ – sua recusa a curvar-se às imposições artísticas do regime autoritário que o condenou ao ostracismo, ao silêncio e à pobreza (enquanto, na URSS ou em Hollywood, os louvados músicos “engajados” se entregavam às mais torpes concessões).

                    ]]  

[[
 ao final do artigo, Augusto volta a reclamar da falta de acesso dos brasileiros à obra de Webern & cia
[[

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