3.9 Meio Século de Silêncio

3.9 Meio Século de SilÊncio
revista somTrês n.35, novembro de 1981





                         1931 é a data a que estão ligadas
duas pequenas joias musicais,
duas pedras-de-toque da música contemporânea
 :                                      .
o Quarteto para Saxofone,                de Anton Webern
e                    Ionisation ,                      de Edgard Varèse.
                                                     ,
dois compositores nascidos,   por   sinal,
no mesmo ano,  1883 .

[[ O artigo trata de focar nessas duas obras e tem esse nome (“Meio Século de Silêncio”) porque até o ano em que foi escrito (1981) tanto o Quarteto quanto Ionisation “permaneciam inacessíveis em disco nacional aos ouvidos brasileiros”.
( 2011 = 70 anos ! ) ]]

Q u a r t e t o  p a r a  S a x o f o n e
Anton Webern (1883-1945)

No dia 13/04/1931 aconteceu a primeira audição do Quarteto, op.22,
para violino, clarineta, sax tenor e piano,
num concerto em Viena,
o primeiro dedicado inteiramente à obra de Webern.
A resposta da crítica a essa composição inovadora foi ,
como era de se esperar
, pateticamente incompreensiva .
Basta citar um artigo publicado em 16 de abril de 1931, num jornal vienense:
“Suas composições são injeções de ruído, de cunho extra musical [...] O desbragamento musical alcançou o seu climax no Quarteto. Esta obra é realmente um insulto direto ao bom gosto, pois os farrapos sonoros, rangentes, uivantes e gargarejantes da clarineta e do saxofone demonstram espantosa similaridade com certas expressões vitais humanas de natureza indecente”



Em contrapartida, Schoenberg a achou uma “composição fabulosa”
e Alban Berg, numa carta a Webern, de 19 de agosto de 1932,
saudou-a com estas palavras entusiásticas:

O Quarteto é um milagre.
O que me espanta, acima de tudo é a sua originalidade. Não é exagero dizer que em todo o universo da composição musical não há nada que se aproxime dessa originalidade 100%

+
Não foi outra a obra que provocou a surpreendente
 conversão de Stravinski à música serial.
Robert Siohan [[autor da biografia de Stravinski]] afirma:
“Foi somente em 1952, após sucessivas audições, em janeiro e fevereiro, do Quarteto, op. 22 de Anton Webern, que o gelo se quebrou.
Desde esse momento Igor não teve sossego até que estivesse familiarizado com a obra pouco prolixa mas rica de invenção do jovem discípulo de Schoenberg, morto tragicamente em 15 de outubro de 1945”.
+
(sobre a obra)
Composição rigorosamente dodecafônica, da “fase ortodoxa” de Webern , o Quarteto é uma das obras mais fluentes e comunicativas dentre as elaboradas com esse método. Nela, a “melodia de timbres” (fragmentação da linha melódica por vários instrumentos) se desenvolve com amirável colorido e transparência; por outro lado, a construção por inversão dos módulos seriais propcia uma extraordinária unidade à composição, toda ela organizada a partir de um cânon invertido a duas vozes (denominado cancrizans, ou em-forma-de caranguejo, para indicar a imitação em sentido contrario), distribuído pelos quatro instrumentos. Foi, certamente, por obras como esta que Herbert Eimerrt cognominou o compositor vienense de “o arquiteto monádico da forma-espelho”!
    Diga-se, ainda, que a combinação dos timbres e especialmente a intervenção incomum de um sax-tenor (provavelmente por influência do jazz, que também se faz presente na obra de  Alban Berg, na cantata O Vinho e na ópera Lulu) dão uma fisionomia particular ao Quarteto.. Ao contrario do que muitos pensam, os aforismos musicais de Webern não são nem frios nem isentos de ternura. É que ele era capaz de exprimir
“um romance num simples gesto, uma alegria num suspiro”
, conforme a expressão de Schoenberg. Webern admirava Johan Strauss. Quem souber ouvir, descobrirá que, neste Quarteto de aparencia ascética, algumas células valsam.
isationISATIONISATION
Edgar Varèse (1883 - 1965)
A estreia aconteceu em 6 de março de 1933,
no Canegie Hall de Nova York, sob a direção de Nicolas Slonimsky.
Mas Varèse iniciou a sua composição já em 1929 e
terminou-a – data expressa – em 13 de novembro de 1931,
o que nos autoriza a comemorar,
desde agora, o cinquentenário de sua produção. [[artigo de 81]].
    Tal como sucede no caso de Webern, essa obra da maturidade, elaborada quando Varèse já se aproximava dos 50 anos, é uma de suas
construções mais densas e significativas.

isationISATIONISATION
cuja duração não
ultrapassa uma média de cinco minutos
(a partitura tem 91 compassos) é
a primeira composição de elaboração erudita,
puramente        abstrata,
que utiliza apenas instrumentos de percussão.
Cita-se como precedente, a obra Rítmicas (1930), do cubano Amedeo Roldán. Mas, como observa Fernand Oulette, as peças de Roldán, muito curtas, baseiam-se em rítmos do folclore cubano e se limitam a poucos instrumentos.

isationISATIONISATION
, concebida para cerca de quarenta instrumentos de percussão
, é uma obra “orquestral”, se assim se pode dizer
, e sem evocações folclorizantes: nela
, os instrumentos percussivos não são usados
apenas como apoiamento rítmico,
mas realmente orquestrados e tratados com a dignidade que até então era reservada aos instrumentos de cordas ou de sopro,
mesmo nas mais ousadas realizações da música moderna.
Como esclarece Slonimsky, a partitura foi escrita
para instrumentos de entonações indeterminadas
(percussão propriamente dita) ou de
entonações variáveis (duas sirenes, grave e aguda).
A percussão se desdobra, timbristicamente,
por grupos de instrumentos
de membranas reverberantes e de
ressonancia metálica ou de madeira,
e ainda por instrumentos tangidos por fricção (güiros cubanos)
ou por agitação (maracas).
A eles se adiciona o piano, percutido em agregados de notas.

Em suma, Varèse recorre praticamente a instrumentos cuja sonoridade se define pelo timbre e pelo registro topológico (alto-médio e baixo, ou agudo e grave). O resultado – que não deixa de construir uma modalidade de coloração sonora – é uma “melodia de timbres” sem melodia.
+
(sobre a obra)
É notável como Varèse logra extrair desse conjunto, que parece ao mesmo tempo quantitativamente complexo e musicalmente limitado, não uma convulsão caótica mas uma disciplinada explosão sonora. E como, sem ser anedótica ou folclorística, essa composição cria um espaço inquietante, onde as sirenes vozeiam sua angístia abstrata, descrevendo, como pretende o compositor, “belas curvas parabólicas e hiperbólicas”, que soam, porém como perguntas-se-resposta em um universo desconhecido.
isationISATIONISATION
é também a síntese e a radicalização de todo o trabalho de Varèse até então. Pois se nas composições anteriores – Offrandres, Hyperprism, Octandre, Intégrales, Amérique, Arcana –, apresentadas ao público entre 1922 e 1929, se pode vislumbrar, ainda, algum eco das células rítmicas de Stravinski ou das harmonias schoenberguianas, aqui Varèse nos aparece definitivamente varèsiano. isto é, não se parece com nada do que se fez antes, a não ser com ele mesmo
.   
Na tradição do Oriente e da África encontra-se, por certo, antecedentes de música de percussão, como o gamelão javanês ou balinês. Mas Varèse não acusa influências estruturais ou rítmicas dessa música. Curiosamente, estava mais familiarizado com a música afro-brasileira, atraves de Villa-Lobos, com quem se encontrou em Paris. Segundo Odile Vivier [[fez uma biografia de Varese]], ele frequentava Villa-Lobos, que, em seu apartamento no Boulevard Saint Michel, o iniciou nas batucadas brasileiras. Relembra a mesma autora que ele disse, certa vez, a Alejo Carpentier: “Falar de ritmo não é suficiente. O ritmo não é mais a constante de uma batida. É preciso outra coisa. É preciso que a percussão fale, que ela tenha suas próprias pulsações, seus próprios sistemas sanguineos. Ela deve insuflar o seu poderio no conjunto da orquestra, como acontece nas batucadas”. Um registro desse contato é a famosa fotografia do compositor abraçando Villa-Lobos, em Paris, 1926 ou 1929.
    Também como Webern – e nas antípodas do seu prolixo e destemperado colega brasileiro –, Varèse deixou uma obra pequena e essencial, que cabe, toda ela, em quatro discos.

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