3.6 Pierrot, Pierrôs

3.6 Pierrot, Pierrôs
Jornal da Tarde de 27/3/1982, sob o título Schoenbrg, Stravinski: Duas Obras, Dois Escândalos, o estudo constitui expansão de artigo anterior, Pierro Lunar no Brasil, estampado na revista SomTrês, n.9, setembro de 1979
em Música de Inveção, pgs 37 - 44



Em 1912, um ano antes do choque da Sagração da primavera, de Stravinski, uma outra obra escandalizou os ouvidos do século :
Pierrot Lunaire (1912)
, de Arnold Schoenberg, um ciclo de 21 poemas de Albert Giraud,
em versão alemã de Otto Erich Hartleben, para voz e pequeno conjunto instrumental (piano, flauta e flautim, clarinete e clarinete baixo, violino, viola e violoncelo).
Os instrumentos crispavam de dissonâncias os breves “melodramas” fantasmagóricos, um dos quais Salgenlied (Canção da Forca), durava pouco mais de dez segundos. A cantora não cantava nem recitava. Fazia qualquer coisa entre essas duas coisas. Era o Sprechgesang (canto-falado),
uma prática vocal inaudita na tradição musical do Ocidente.
(
S  c  h  o  e  n  b  e  r  g  
S t r a v i n s k i
Dois nomes que polarizaram e dividiram, por muito tempo, a música moderna.
Pierrô.Lunar..(1912) e (1913)..Sagração.da.Primavera
Duas obras-chave do primeiro período de ambos os compositores que são talvez, as que melhor os representam num ideograma hipotético da Era, ainda que Pierrot seja anterior à criação do dodecafonismo – a bandeira de luta do mestre de Berg e de Webern – e que a Sagração tenha sido sucedida por numerosas outra faces e fases (inclusive a última, surpreendente serial) do inquieto e múltiplo compositor russo-franco-americano.

“É curioso constatar que o destino dos dois grandes ‘escandalos’
da música contemporânea, Le Sacre e Pierrot Lunaire, foi sensivelmente pararelo:
assim como Le Sacre permanece, aos olhos da maioria, O fenômeno Stravinski,
Pierrot Lunaire permanece igualmente O fenômeno Schoenberg.
Nós poderíamos, grosso modo, ratificar essa opinião, pois de fato, num como noutro caso, jamais houve coalescência maior entre os recursos da linguagem propriamente dita e
a força poética, entre os meios de expressão e a vontade de expressão”.
(Pierre Boulez, Stravinski Demeure, 1953)

INFLUENCIANDO
Obra fundante, Pierrot Lunaire exerceu notável influência sobre outros compositores ...
O próprio Stravinski, que assistiu em Berlim a uma das primeiras apresentações da obra (8 de dezembro de 1912), pagou-lhe tributo direto em duas das Três Poesias Líricas Japonesas, para voz e pequeno conjunto instrumental: “Mazatsumi” e “Tsaraiuki” (compostas na França, respectivamente em dezembro de 1912 e janeiro de 1913); aí encontramos as sonoridades contrastantes, os largos intervalos da linha melódica e o estilo aforismático do Pierrot. Este, também, é o caso de Ravel, especialmente em “Surgi de la Croupe et du Bond”, dos Três Poemas de Stephane Mallarmé (1913), que Stravinski, com razão, afirmou preferir a qualquer outra obra do músico francês. E embora Boulez se reclame a influência de Webern, é antes o Pierrot que nos vem à cabeça em certas passagens vocais de Le Marteau Sans Maître.

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Apesar dos tiques nacionalóides que sempre atrapalharam a sua visão e que acabaram por levá-lo a posições mais conservadoras, Mário de Andrade chegou a reconhecer o mérito revolucionário da composição. Num manuscrito de 1929, divulgado por José Miguel Wisnik (Coro dos Contrários, 1977), define o Pierrot Lunaire como “quase-música” e vislumbra nessa obra uma “arte nova”, assinalando o seu influxo no melhor Villa-Lobos, o da fase experimentalista dos anos 20. Mário diz: “Na admirável criação de Schoenberg a voz não é nem fala nem canto é [...] é a Sprechgesang. Dessa experiência resultou [...] um poder de experiências de todo gênero, vocais, instrumentais, harmônicas, rítmicas, sinfônicas, conjugação de sons e de ruídos etc. etc. de que resultou a criação duma por assim dizer nova arte a que, por falta de outro termo, chamei de quase-música. [..] Resumindo: essa arte nova, essa quase-música do presente, se pelo seu primitivismo ainda não é música, pelo seu refinamento já não é música mais”.

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foram poucas as apresentações
em solo brasileiro, tanto de
Pierrot Lunaire quanto de
Sagração da Primavera,
e na maioria dessas raras excessões:
“um público circunstancial e, na maioria, despreparado”
“a casa não estava cheia...”

[
TRANSCRIAÇÃO

A ideia de traduzir os textos do Pierrot Lunaire me veio em meados de 50, quando me iniciava no universo musical de Schoenberg e de Webern. Reativou-se nos dias acesos do Tropicalismo, em 1968, época em que Júlio Medaglia e eu chegamos a pensar em realizar algumas das “canções” com Gal Costa, num cenário pop art nouveau. Essa “heresia não se concretizou; mas hoje, depois que a cantora de jazz Cleo Laine interpretou com tanta cursividade o Pierrot, já não parece tão despropositada ou inviável. Eu achava que o “canto-falado” estava abrindo brechas na música popular – Jimi Hendrix, por exemplo, dizendo ritmicamente os seus textos atrás das sonoridades distorcidas das guitarras, ou Gilberto Gil cantofalando A Voz do Vivo de Caetano Veloso – e que era o momento de juntar essas pontas e criar novos curto-circuitos musicais. Do sonho, que não acabou, ficaram as primeiras versões que fiz – cerca de 1/3 dos 21 poemas que constituem o ciclo do Pierrô Lunar –, completadas em 1978 para a apresentação brasileira da obra – [sob regência de Ronaldo Bologna e Edmar Ferreti como solista vocal, em dois únicos espetáculos, no MASP e em Campinas, em dezembro de 1978.]
[[ há registros de uma apresentação feita em 1992 (ESPECIAL DA TVCULTURA) ]]

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“Uma das razões que me [[Augusto]]
levaram a empreender a tradução do Pierrot
foi a convicção de que o entendimento imediato e particular-
izado do que se ouve é indispensável para a comunicação dessa obra.”
Àquela altura, Augusto ignorava que o próprio
Schoenberg pretendia que o Pierrot fosse interpretado,
de preferência, no idioma do local em que se desse a sua apresentação
:

Refere Paul Griffith que, em 1942, Schoenberg escrveu a Erwin Stein, em Londres, sugerindo-lhe que gravasse a obra em inglês; e também que em sua estreia em Los Angeles, em 1944, o Pierrot foi interpretado em inglês, com a aprovação do compositor. André Schaeffner alude à primeira audição integral da peça em Paris, em 16 de janeiro de 1922, apresentada em francês por Marya Freund, numa versão que se afastava tanto da adaptação alemã quanto do texto de Albert Giraud, que a inspirara. Segundo Schaeffner, em 1921-1922, em Viena, no salão de Alma Mahler, as duas versões, a alemã e a francesa, foram confrontadas e as opiniões se dividiram: um dos discípulos de Schoenberg, Egon Wellez, escreveu na época que a intérprete alemã “falava” o texto, ao passo que Marya se aproximava mais do canto.
E aqui tocamos no ponto nevrálgico do Pierrot. O Spreachgesang ou “canto-falado”.




Muito se tem discutido sobre os exatos contornos dessa modalidade de expressão vocal, que fica numa zona intermediária entre o canto e a fala. Na introdução que escreveu para a partitura, Schoenberg frisa que a melodia correspondente à voz não deve ser cantada. A intérprete deve manter estritamente o ritmo, como se cantasse, mas não deve cantar as notas da melodia (assinaladas com uma cruz sobre a haste da nota): a voz deve dar a altura, mas abandoná-la imediatamente, subindo ou descendo. Adverte Schoenberg que a executante não deve cair numa modalidade de fala “cantada”, pois o objetivo não é, de modo algum, a fala realístico-natural; mas também não deve evocar uma canção. Previne, ainda, contra os excessos interpretativos: a executante não deve querer dar forma ao caráter de uma peça particular a partir do sentido das palavras, mas sempre, exclusivamente, a partir da música.

Quaisquer que sejam, porém, as variantes de interpretação, o fato é que a obra permanece medularmente íntegra em sua provocação auditiva. No âmago dos Pierrôs possíveis, pulsa o Pierrô fundamental da genial intuição de Schoenberg, e o halo de incertezas vocais que o acompanha só lhe assegura permanência revolucionária.

[

RELAÇÃO COM AS PEÇAS NÔ JAPONESAS
Em nenhum momento o compositor parece ter correlacionado o seu Sprechgesang – inovador, nos quadros da música ocidental – com práticas orientais semelhantes, como as ocorrem, por exemplo, nas peças Nô japonesas, onde, no dizer de Pound, “as palavras do texto são faladas ou semicantadas ou entoadas, com um acompanhamento adequado e tradicional de movimento e cor, parecendo, elas próprias, apenas meia-sombras”. A ligação não escapou a André Schaeffner, que escreveu: “Quanto à Sprechmelodie, seu princípio se encontra já na declamação cantada do teatro do Extremo Oriente”.
[Penso, ainda uma vez, na lição do teatro Nô, que reúne a dança, a música, o texto, o gesto, a mímica e a arte visual na “intensificação de uma única imagem” conforme expressão de Ezra Pound”. Como disse Ernest Fenollosa, num estudo sobre o teatro Nô revelado pelo próprio Pound: “a beleza do Nô reside na concentração. Todos os elementos – vestuário, movimento, versos e música – se unem para produzir uma única impressão clarificada”.]

]

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