3.7 Satie, O velhinho-Prodígio da Música

revista SomTrês n.17 maio/1980
Em Música de Invenção, pgs 73-81





Dos nossos modernistas, quem entendia de música era Mário, mas quem sabia das coisas, como sempre, era Oswald, Mário de Andrade, o musicólogo, apostou numa causa errada: o nacionalismo provinciano de Camargo Guarnieri. E acabou empatando com a cartilha de   JDANOV, o famigerado
comissário soviético
que condenou o dodecafonismo como
“arte decadente”,
depois que os nazistas já
haviam condenado como
“arte degenerada”
. Na “Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil”, que  publicou em 7.11.1950, atacando a música dodecafônica, Guarnieri andou trocando as bolas. O que lhe valeu três tacapadas certeiras de Pagu, nas crônicas do jornal Fanfulla (12 e 26.11 e 3.12.1950), e esta ironia: “Anteontem, embarcou o maestro Camargo Guarnieri. Podia voltar e eu gostaria que nos explicasse de viva voz o que quer dizer mesmo arte degenerada”.
Oswald, no pouco que falou de música, falou bem. Num artigo de 43 ou 44 (incluído em Ponta de Lança) afirmava já: “Se houve ultimamente um gênio em França, esse se chamou Erik Satie...” E repetia numa crônica (Telefonema) de 1952: “Era um velho de 70 anos e tinha sido cruelmente abandonado por todos os seus amigos, quando o encontrei no Quartier Latin. Chamou-se Erik Satie. E talvez venha a ser considerado o maior gênio musical do século XX”.
Satie nunca chegou aos 70 anos. Morreu com 59, embora devesse parecer muito mais velho quando Oswald o conheceu (entre 1922 e 1925). “Mesmo aos quarenta anos, Satie já parecia muito velho”, diz Ornello Volta, responsável por dois itens importantes da bibliografia satieana – Écrits (1977), contendo os escritos do compositor, e Erik Satie (1979), para a coleção Seghers/Humor. É também pouco provável que ele venha a ser considerado o maior gênio musical do século que produziu
Schoenberg Webern Stravinski Cage Stockhousen
. Um século ao qual não pertenceu inteiramente, já que suas primeiras obras importantes se inscrevem no século anterior.
Mas sem dúvida pode, hoje, ser visto como um dos gênios musicais do século, ainda que continue a suscitar polêmicas e a desafiar classificações. Oswald, o amador genial ( “
V i v a  o s  a m a d o r e s !
”, não bradava Satie?), acertou no alvo. E chegou a se antecipar a John Cage, cuja primeira reavaliação de Satie, então bastante esquecido, é de 1948. Dessa data é a Defesa de Satie, conferência proferida por Cage no Black Mountain College, perante um auditório composto, em boa parte, de professores alemães refugiados nos EUA, os quais ouviram escandalizados a proclamação de que Webern e Satie estavam certos e quem estava errado era Beethoven, cuja influência tinha sido nefasta para a arte da música. Cage dedicou a Satie, então, nada menos do que 24 concertos, que culminariam com a apresentação pré-dada (com música incidental) A Armadilha de Medusa, tendo o arquiteto BuckMinster Fuller no papel de Barão Medusa. Numa “universidade” tão livre como Black Mountain (local do primeiro happening), nada poderia terminar de maneira convencional. Para pôr um por um ponto final na querela entre beethovenistas e satieanos, desencadeada pela palestra de Cage, consta que o reitor, Bill Levi, propôs um duelo de Schnizel e crêpe suzettes e que os ânimos exaltados se aplacaram provisoriamente numa farra pastelônica...

Mas que é, afinal, Satie, aos olhos de agora?
“Não se trata de saber se Satie é relevante,
ele é indispensável”, diz Cage.

O arco da invenção satieana é incomum. Vai do século XIX ao XX, do impressionismo ao dadaísmo, do rosa-cruz ao café-concerto, em suma, de
Esotérik
(como o chamou Alphonse Alais) a
SatiÉrik
(como o preferiu chamar Picabia) ,
Arco ?

A R C O :
Da primeira fase, a mística e precursora (1887-1895), são as
S a r a b a n d a s
que antecedem às harmonias debussyanas.
Outras composições do período
( G y m n o p é d i e s  ,  G n o s s i e n n e s )
rebelam-se, no seu modalismo/medievalismo dissolvente,
da tirania tonal e insinuam noções liberadoras de ritmo e de tempo.
Subitamente, o homem se transfigura.
1900.

À noite,

nos cabarés de Paris,

dedilha valsas ligeiras
( Je te veux , Tendrement).
Riso ou sorriso? Nova mudança.
Troca a roupa elegante de veludo e o casquete de boêmio pelo terno escuro, o chapéu coco e o colarinho postiço de notário, complementados por um indefectível  guarda-chuva
. O exterior envelhece. Ele rejuvenesce,
velhíssimo na aparência,
heterônimo em pessoa.

Enquanto Debussy produz obras-primas como as
               Canções de Bilitis (1897) e os
               Noturnos (1899),
o riso de Satie começa a florescer em peças
curtas
e desconcertantes pela simplicidade e pelo tom paródico.
Os títulos, antes enigmáticos, criticam agora,
em poéticos disparates, a nomenclatura delisquescente
de matiz impressionista:
Peças Frias (Três Árias para Fazer Correr e
                      Três Danças de Viés), 1897;
Prelúdios Flácidos para um Cão, 1912,
Três Valsas Distintas do Afetado Enfadado, 1914,
para citar só alguns exemplos.

Dadá adota logo esse velhinho terrível, que com a peça
Armadilha de Medusa (1913)
já praticava
o absurdo com a maior naturalidade.
O balé Parade, 1917,
será o sucesso de escândalos do
ex-esotérico Satierik.
Um concerto para máquina de escrever, sirene e tiros,
com jazz e orquestra.

Mas Satie tem outras facetas.
“Mostrem-me alguma coisa nova. Eu começo tudo outra vez”.
Em Esportes e Divertimentos (1914),
mistura textos e notas músicais em partituras caligrafadas em
preto e vermelho,
associando música, poesia e desenho,
numa inédita operação intersemiótica,
que a Roger Shattuck evoca, simultaneamente,
a concisão dos haicais e as inovações gráficas de
Mallarmé e Apollinaire.

Em Socrate (1918) ele esconde o riso:
sobrepõe-lhe a máscara ascética
de um despojamento monocórdio. Mas então era sério?
O riso volta a espoucar na
Música de Mobiliário,
em colaboração com Milhaud:
música de fundo, a ser preenchida pelo público
(“Circulem! Falem! Não escutem!”).

Os últimos anos (1924-1925)
mostram-no ainda envolvido com a vanguarda:
nos balés Mercure, junto a Picasso,
e Relâche ( Descaso), ao lado de Picabia;
na música-de-filme para Entreato, de René Clair.
Ninguém sabe como seria
o Quarteto de Cordas que projetava,
quando a morte o colheu – afirma Cage.

O riso de Satie escoou para os seus Escritos, que, dispersos ou esquecidos, só recentissimamente (1977) foram reunidos por Ornello Volta. Peças curtas e fragmentárias (como as suas músicas), tendendo ao aforismo: anotações, pseudoestudos, pseudoconferências, quase-poemas, desenhos, anúncios-poemas – um material que demanda, como Esportes e Divertimentos, reprodução fac-similar, pois o design caligráfico é parte integrante da criação. O humor de um músico que incluía em suas partituras indicações como “sem enrubescer com o dedo”, ou “como um rouxinol com dor de dentes”, mas que nada tem de meramente humorado, antes um humor crítico, de quem era capaz de escrever, implacável: “Ravel recusa a Legião de Honra, mas toda a sua obra a aceita”, e de dizer: “Não basta recusar a Legião de Honra, o essencial é não merecê-la”.
Não é de admirar que muitos não saibam o que fazer com Satie. Entre nós, Carpeaux – o anti-Oswald, isto é, o erudito sem intuição – sentencia, em sua idiossincrática e lacunosa (Ives nem aparece na edição de 1962!) Nova História da Música: “deixou mais anedotário que obra”. Felizmente, Décio Pignatari, o Oswald magro da geração dos anos 50, foi certeiro como este, na revista Invenção n.5 (1967): “Erik Satie realizou no nível semântico-pragmático o que Webern realizou no sintático”.
O misterioso Acaso que rege a circulação de música erudita por estas bandas brindou-nos com pelo menos dois registros fascinantes de Satie. Um LP-Fermata-SFB-294, contendo Parade, sob a regência de Maurice Rosenthal, com todos os ruídos prescritos. Outro, mais recente: o espantoso Erik Satie – As Primeiras Obras para Piano, do holandês Reinbert de Leeuw. Leeuw é, também, o único pianista que gravou Vexations (Vexames) [NT: até 1980], que Satie compôs em 1893 e que consiste num único motivo, prescrito para ser repetido 840 vezes (para ouvir integralmente a obra ter-se-ia que escutar o disco – editado, pela Telefunken, na Holanda – cerca de cinquenta vezes seguidas). Em 1963, Cage dirigiu em Nova York a primeira audição integral da peça, revezando-se com outros pianistas. O concerto durou 18 horas! Não. Não há guarda-chuva contra Satie,
“o v e l h i n h o - p r o d í g i o  d a  m ú s i c a”
, como o chamou Noel Arnaud.

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